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II - Sigmund Freud – Psicanálise Hoje – Breve Relato


Texto - III

As diversidades e as dificuldades inerentes à convivência humana estão presentes desde os primórdios, quando os primeiros habitantes da terra precisaram vencer as complexidades da natureza.

Antes de criar a psicanálise Sigmund Freud passou anos de sua vida tentando entender o funcionamento da fisiologia do cérebro e como ele poderia desencadear os distúrbios mentais. Freud começou sua vida profissional como neurologista, entre 1882/1885, trabalhou com pacientes que sofriam de lesão cerebral no Hospital Geral de Viena, já tendo pesquisado o sistema nervoso de lampréias e lagostins e escreveu três monografias sobre paralisia cerebral infantil, nesse percurso. Nesta época, os neurologistas estavam às voltas com algumas doenças como histerias e neurastenias, como por exemplo, paralisias de membros, porém, os patologistas nada encontravam nas autópsias para justificá-las.

A escola francesa, tendo Charcot como figura central, atraiu a atenção de Freud que foi fazer um estágio com ele em1885/86, para estabelecer um contato com o que também era um método anátomo-clínico, mas que privilegiava os sinais e sintomas obtidos na observação meticulosa. Charcot utilizava também a hipnose com o intuito de facilitar a lembrança de eventos perturbadores aparentemente esquecidos. Esta postura de Charcot teve uma influência marcante em Freud, que passou a praticar essa modalidade de método clínico quando retornou a Viena.

Freud interessou-se pelos pacientes histéricos e tentou trabalhar com a histeria fora da teoria neurológica, mas suas considerações teóricas, bem como a dificuldade que encontrou para hipnotizar alguns de seus pacientes, o fizeram concluir que a hipnose levava a curas temporárias. Ele se deu conta da existência de um limite na técnica hipnótica, então, iniciou um trabalho de escuta desses indivíduos em estado de vigília, abrindo caminho para a elaboração da teoria do recalque, descartando a hipnose em favor da associação livre. Freud alude a esse período quando diz:

“A teoria do recalque é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e todavia nada mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se compreende a análise de um neurótico sem recorrer à hipnose. Em tais casos encontra-se uma resistência que se opõe ao trabalho de análise e, a fim de frustrá-lo, alega falha de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência; por conseguinte, a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose.” ( ) FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira, Vol. XIV apud GARCIA-ROZA, L. A. Op.cit. p. 37.

Quando Freud estabeleceu a escuta desses pacientes, o fez de um novo lugar, diferente do da psiquiatria (ou mesmo da neurologia que era sua área de formação). Ele se concentrou no que viria a ser o sujeito do inconsciente, hipótese básica da teoria psicanalítica. Um novo modo para tentar compreender o humano surgiu, então, após 1895. Sigmund Freud nomeou e estabeleceu o conceito de inconsciente psíquico com leis e lógicas próprias, acompanhando assim o lado consciente do ser humano. O conceito de inconsciente fora usado por Gottfried Wilhelm Von Leibniz, filósofo, cientista, matemático, diplomata e bibliotecário alemão, 200 anos antes de Freud, e também foi usado por Hegel para construir sua dialética. A originalidade do conceito de Inconsciente introduzido por Freud deve-se à proposição de uma realidade psíquica, característica dos processos inconscientes. É preciso diferenciar inconsciente, sem consciência, de Inconsciente, conforme elaborado por Freud, que diz respeito a uma instância psíquica basilar na constituição da personalidade. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Psican%C3%A1lise).

A partir do conceito de inconsciente psíquico, Freud ao mesmo tempo rompe com a psiquiatria clássica e subverte o sujeito proposto por Descartes, descentralizando a soberania da consciência, propondo um mesmo sujeito como portador da consciência e do inconsciente, da razão e da emoção, cabendo ao sujeito a responsabilidade pela sua subjetividade. Ao sistematizar essa descoberta fundamental, Freud criou, então, a Psicanálise. Deu um sentido ou uma racionalidade a fenômenos estranhos e não explicados, ainda, pela ciência. Ele percebeu que não seria simples comparar o homem a uma máquina, as infinitas diversidades do cérebro e suas interações químicas constituídas por nossas emoções, pensamentos e experiências de vida, que ainda são muito complexas e incógnitas até hoje. Em seu texto intitulado “Dois Verbetes De Enciclopédia” – (1923[1922]) – (A) PSICANÁLISE, ele nos fornece uma definição de psicanálise, que se subdivide em três partes:

“PSICANÁLISE é o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica”. Dois Verbetes De Enciclopédia – (1923[1922]) – (A) PSICANÁLISE Vol.XVIII.

Atualmente, sabe-se do progresso das neurociências, que é muito bem vinda, porém, muito distante das teorias psicanalíticas. Quando tratamos da mente, é importante analisarmos tanto teorias psicológicas como teorias neurofisiológicas. Às vezes, pesquisadores buscam construir interligações entre as neurociências e a psicanálise, como um tiro ao alvo. Mas, a fragilidade dessas interligações em nada contribui para o conhecimento científico, relacionado a uma metodologia ruim, que não engrandece a psicanálise. Seria necessário, portanto, certo rigor da ciência em um aspecto fundamental, o da arte do encontro, contido em um contexto dinâmico inter-humano.

Não sou contrária à atuação da neurociência. Penso, porém, que as neurociências e a psicanálise pertencem a campos totalmente divergentes e distintos. As questões relativas à oposição entre as neurociências e a psicanálise são infundadas, uma vez que as incompatibilidades entre as duas sejam inexistentes. O campo das circuitarias cerebrais é pertencente das neurociências e sua farmacologia pode paralelamente no campo psicanalítico atuar de maneira auxiliar, criando melhores condições para que um sujeito possa ser analisado.

Se observarmos como base referencial autores como Zygmunt Bauman, Contardo Calligaris, Jurandir Freire Costa, Maria Rita Kehl, Eric Laurent, Jesus Santiago, Sylvie Le Poulichet entre outros, estes, não desacreditando do humano, descrevem essa sociedade atual como imediatista, narcisista, do gozo, consumista/compulsiva, tecno-científica, da descartabilidade, do espetáculo, da volatilidade, do tédio etc.

Como pensar em um percurso analítico dentro desse contexto do gozo, do imediatismo, narcisismo, consumismo/compulsivo, adicção etc., desses indivíduos dele pertencentes?

Podemos dizer que, no meio psicanalítico há muito consenso sobre a subjetividade e como ela se apresenta hoje, diferente daquela do início da psicanálise. Em Freud, já é possível ler a antecipação do que se vive em nossa atualidade, acerca da violência e da agressividade que marca as relações humanas. A psicanálise vai além de sua época, não porque ela seja um guru, mas porque é uma práxis – atividade intelectual exercida pelo homem que contribui à transformação da realidade social – que escuta as mudanças nas formas atuais do sintoma.

Por que não um percurso psicanalítico, já que a psicanálise trata do humano, fazendo com que se estabeleça a arte do encontro dinâmico inter-humano? É do humano a capacidade de pensar a emoção, de sonhar, de criar, de contato entre consciente e inconsciente, a realidade e a fantasia. O ser humano nasce em um contexto simbólico e, ao contrário dos outros animais, caracteriza-se pela incompletude e pelo desamparo original, daí a necessidade vital do outro e dos vínculos. Para mim, o percurso analítico é o caminho mais eficiente e mais ético, (não se trata da ética do bem presente na filosofia racionalista, nem da ética burguesa que é o embrião da sociedade desconcertada e fragmentada como se apresenta hoje). Esse é um percurso que nos abre caminho para pensar e, quem sabe, a não perder a esperança no divino Eros, ou em qualquer outra sinonímia que venha caracterizar o esforço que perpassa o humano de se construir e se reconstruir no mundo, mesmo que a dialética – lei/desejo – não possa ser concretizada nem apaziguada no âmbito individual nem no coletivo. A análise propicia ao par analítico um mergulho aos conteúdos do inconsciente, podendo inclusive permitir ao analisando uma saída analítica, onde o sujeito no seu devir, seja capaz de se responsabilizar pela sua condição de sujeito desejante, se adequando, portanto, aos prazeres oferecidos por esta sociedade adicta/consumista.

Quando Maria Rita Kehl em seu texto: “Por uma vida menos banal” no diz:

“A psicanálise é a cura dos otários? Talvez sim: só que o psicanalista não oferece o endereço da tal festa a ninguém. Ele nem sabe o endereço. No máximo, o analista sabe que o cara que se imagina otário não está perdendo festa nenhuma; a festa do gozo permanente não é proibida, nem é restrita aos mais espertos. Ela é simplesmente impossível de se realizar. Mas isso, o analisando vai descobrir por ele mesmo - se quiser deixar de ser otário”. (http://mariag.multiply.com/journal/item/214 acesso dia 05-05-09)

Essa colocação de Kehl é perfeita, perspicaz e precisa. Acrescento que, onde houver vida humana haverá psicanálise, seja em qualquer tempo, para benefício da humanidade e incômodo dos seus críticos.

Sobre a questão da posição do analista na contemporaneidade, Éric Laurent, de forma brilhante, dedica um capítulo inteiro no seu livro “A sociedade do sintoma – a psicanálise, hoje” em seu texto O analista cidadão, e nos alerta sobre a posição do analista na contemporaneidade, e que precisamos estar atentos. A clínica social não é nenhuma novidade. Há muitos anos várias sociedades de psicanálise, universidades e outras instituições desenvolvem um trabalho de atendimento gratuito ou a baixo custo, voltado para a população carente. A novidade é certa mudança na posição do analista em relação à sociedade.

Laurent, em seu texto, comenta que o analista mantinha-se na posição de intelectual crítico e, não tinha, portanto, nenhum ideal. Produzia um vazio, mantendo-se apenas em sua função pouco participativa. Nesta concepção, a psicanálise era uma prática da desidentificação. Realmente essa face deve ser criticada, mas existe a outra que deve ser lembrada por ter sido mal interpretada – o analista não se mantendo nessa posição crítica pode intervir com seu dizer silencioso.

De acordo com Laurent, o dizer silencioso implica, agora, tomar partido de maneira ativa. Se os analistas se mantiverem nesse lugar vazio seu papel histórico está terminado, pois a psicanálise não pode permanecer alheia aos impasses trazidos pela sociedade contemporânea, exigindo da clínica um trabalho que produza efeitos no Outro social. É preciso que os analistas passem da posição de especialista da desidentificação para a de analista cidadão.

O analista cidadão é aquele que não se apresenta como o que tem as soluções (nem como aquele que fica histericamente apontando a falha dos demais discursos), mas se inclui na sociedade e oferece a psicanálise como uma ferramenta, como uma prática que possa servir aos conflitos subjetivos da contemporaneidade. Essa nova orientação da psicanálise convida o analista a voltar seu olhar, escuta e ato, para a sociedade. Conforme Laurent:

“Outrora, pensava-se que ele deveria intervir apenas no âmbito cultural. Está na hora de acordar! O que se chamava de cultura desapareceu com os novos meios de informação, e continua a se transformar. Não há porque chorar sobre o leite derramado: ah, o tempo de Sartre, o tempo de Lacan... Não há dúvida de que o tempo deles não é o nosso. Nos dias de hoje, um intelectual, um professor, pode dizer qualquer coisa, que entra em diferentes mídias com sua opinião, para logo depois esta ser convertida em lixo!”. (Pg. 147)

Creio que, no modelo multiprofissional, característico das novas formas de assistências presentes na atualidade, como nos alerta Laurent, os analistas não devem se retrair perante a possibilidade de participação nos comitês de ética, onde cada vez mais o ideal é modificado pela ciência. Isso tornaria possível um vir a ser participativo e sensível às formas de segregação, ajudando a sociedade a respeitar a articulação entre normas e particularidades individuais, não retirando-as, mas misturando-as no universal, seja pelo motivo que for. É preciso saber transmitir à sociedade algo do interesse que a particularidade de cada um tem pra todos.

Entre elogios e críticas, a psicanálise tem sido convocada a atuar em diversas áreas: educação, saúde, empresas, e em muitas outras instituições. Essa convocação requer dos analistas uma sustentação teórica e clinica que permita que suas intervenções atuem em campos mais amplos, seja pelos diversos níveis de poder sócio-econômico, seja diante de uma nova clínica. Os impasses presentes entre pulsão e cultura são estruturais, e revelam a intransponível situação de desamparo psíquico em que se encontra o sujeito num mundo sem Deus e cooptado pelas exigências da cultura. É certo que a inclusão da psicanálise, em diversas áreas, possa construir algo para além de um diálogo possível, um vir a ser mais atuante, tornando possível cada vez mais a manifestação da criatividade humana.

“A psicanálise reordena um emaranhado de impulsos dispersos, procura enrolá-los em torno do seu carretel. Ou, modificando a metáfora, ela fornece o fio que conduz a pessoa fora do labirinto do seu inconsciente”. (Sigmund Freud).

Até o próximo texto !!!
 
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