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IV – Novas Lapidações Familiares e Suas Diversidades - Texto - VI

O modelo representativo que chamamos família varia segundo a sociedade, qualquer que seja esse modelo é tributo de uma ordem social que o produz, e nenhum modelo familiar mesmo que chamado de tradicional condiz com sinônimo de normalidade. O significante “família” é composto por fatores conscientes e inconscientes, que irão definir a maneira e engendrar as categorias pelas quais o mundo social é organizado.
Nos últimos séculos, a imagem de uma paternidade grandiosa projetada pela antiguidade, deu mostras de desgaste e vinculou-se a um espaço restrito, o da família nuclear, no final do século XIX, quando começou a dar sinais de seu desaparecimento. Muitos estudiosos acreditam que a imago rei foi o último sustentáculo público da imagem paterna. No século XX, ulterior ao período pós-guerra de 1945, a grande preocupação passou a centrar-se na intenção de recuperar uma autoridade paterna. Essa intenção retratava a tentativa de salvar o pai, depois de sua carência e da humilhação ocorrida em função das revoluções francesa e industrial. Lacan (1960) adverte que o pai contemporâneo se sustenta numa imagem de pai humilhado, expressando com isso o sentido da derrocada patriarcal, o declínio da imagem social paterna. Partindo desse ponto, a imagem paterna parece ter sido ligada à esfera da subjetividade, tornando-se pouco visível no social.
Um dos grandes discursos atuais gira em torno das chamadas, novas lapidações/organizações familiares, formas de ligação afetiva entre sujeitos que fogem aos padrões tradicionais – monoparentais, homoparentais, adotivas, recompostas, concubinárias, temporárias, de produções independentes, etc. Há também aquelas cujas mudanças afetam diretamente as condições de procriação – barriga de aluguel, embriões congelados, procriação artificial com doador de esperma e/ou anônimo e, a nada impossível clonagem humana.
Para historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco em seu livro “A família em desordem”, a instituição familiar resiste, porém de cara nova, com pais homossexuais, adoção e inseminação artificial.
Conforme Roudinesco:
"A família é hoje defendida como o único valor seguro ao qual ninguém pode nem quer renunciar" e afirma que: "Todas as pesquisas sociológicas mostram que ela é estimada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e condições sociais”.
Privilegiando a dialética do desejo desenhado pela abordagem psicanalítica, e demonstrando como os efeitos do tempo incluindo os socioeconômicos concorreram para as mudanças na estrutura familiar, a autora descreve que o sentimento atual em relação à ordem familiar refere-se a uma angústia; tal angústia passa a acarretar uma desordem específica, na medida em que está ligada ao terror da abolição da diferença dos sexos que a perspectiva da dissolução da família acarreta.
De maneira bastante esclarecedora, a autora faz um minucioso estudo, revelando os diversos discursos produzidos sobre a família em diferentes momentos da história. A família ocidental contemporânea é desafiada, a partir do século XVIII, pela irrupção do feminino; com o advento da burguesia, a torna-se uma célula biológica que cede lugar central à maternidade.
  A família fundada no amor romântico e, que por meio do casamento, era aprovada a união de um homem e uma mulher que se desejassem reciprocamente; o cristianismo impunha o primado da paternidade biológica, sem, entretanto, abolir a paternidade adotiva. O pai era visto como um ser à imagem de Deus, mas submetido às leis da natureza.
Dessa forma, a filiação não decorria de acordo com a vontade paterna, mas da vontade divina. Com a dupla transmissão – sanguínea e nominal – e sem o conhecimento dos genomas e DNA atuais, o pai, como tal, se condicionava a ser designado indiretamente pela mãe, garantido pela sua fidelidade conjugal.
A nova ordem familiar conseguiu represar a ameaça que esta irrupção do feminino representava à custa do questionamento do antigo poder patriarcal, porém por outro lado, ainda não conseguiu ultrapassar – o fantasma da homossexualidade – que ronda no âmbito do masculino. Quanto à sua evolução a família ocidental identifica-se, que sua transformação é diretamente proporcional àquelas que atingiram o pai, em sua função dentro dessa instituição – familiar – e conseqüentemente, em sua imago no imaginário social.
Particularmente desde os anos 60, os discursos à problemática das mulheres aumentaram sensivelmente. A chamada ‘revolução sexual’, juntamente com o aparecimento da pílula anticoncepcional – por sinal controverso, pois prenunciava o fim da família, dos costumes e da moral – e o reposicionamento do contexto social, sem dúvida, revolucionário vieram a contribuir para um discurso a respeito do sexual. 
Temos antes de tudo reconhecer, entretanto, que mudanças como essas ocorrem de certa forma num ritmo muito lento e frequentemente – para não dizer sempre – chegam atrasadas, com uma enorme defasagem em relação aos desafios pertinentes ao campo da sexualidade. A partir daí, na família dita ‘contemporânea’ ou ‘pós-moderna’: casais passaram a se unirem, de maneira instável, dois indivíduos em busca de relações sentimentais e/ou realizações sexuais. À medida que divórcios, separações e recomposições conjugais aumentaram, a transmissão de uma autoridade foi se tornando então cada vez mais problemática.
Considerado um sacramento pelo Direito Canônico, o casamento vai perdendo sua eficácia simbólica à medida que são desfeitos. A família ocidental contemporânea, dessa forma, não é mais considerada um paradigma do poder divino ou do Estado. Porém, mediante a constatação de sua permanência, paradoxalmente, ela é ainda considerada a instituição humana mais sólida da sociedade. Nessa medida, o que importa agora são os laços simbólicos que unem duas ou mais pessoas e não sua consanguinidade ou ascendência. O grupo familiar vai muito além de um vínculo biológico, ter uma família é uma aspiração legítima de todo ser humano, independentemente das diferenças individuais, pois está potencialmente mais relacionada a laços afetivos.
À família autoritária, triunfal ou melancólica, sucedeu a família facetada de hoje – de feridas íntimas, de violências silenciosas de lembranças recalcadas etc. O poder paterno dominante, fornece agora uma imagem invertida de si mesmo, deixando transparecer um eu descentrado, autobiográfico, individualizado, adicto etc.
Segundo Roudinesco, instaura-se então, outro paradoxo podendo ser atribuído ao fato de que a bem pouco tempo atrás, a família era acusada de ser a grande repressora dos desejos e liberdades individuais e, excluía toda conduta que não estivesse dentro de seus padrões ditos ‘normais’, hoje já podemos ver homossexuais lutando por seus direitos e desejos de submeterem-se à ordem familiar – à união civil e até a adoção de crianças.
A adoção de crianças por casais homossexuais está aos poucos transformando a sociedade, alterando paradigmas. Temos que aprender a lidar com essa novidade e buscar informações, para de certa maneira podermos fundamentar entendimentos referentes aos pareceres e decisões frente a essa nova demanda. Os casais apresentam um conceito de família baseado nas próprias vivências com suas famílias de origem, eles antes de tudo são cidadãos e possuem direitos e deveres.

Aqui mesmo na minha cidade natal – Ribeirão Preto – no jornal “Gazeta de Ribeirão Preto”, foi publicada em 15/01/2009 a seguinte notícia:

 Justiça de Ribeirão concedeu, em decisão proferida ontem, a guarda definitiva de quatro irmãos a um casal de homossexuais masculinos. A decisão significa que os cabeleireiros João Amâncio, 36 anos, e Edson Paulo Torres, 43, foram autorizados a adotar Ana Beatriz (6 anos), Willian (8), Carolina (10) e Suellen (12)”.

Eles já estavam juntos há 17 anos e lutaram pela adoção dos quatro irmãos desde 2006, pois as crianças já viviam com o casal desde dezembro deste mesmo ano, quando os parceiros conseguiram a guarda provisória das crianças. A adoção aconteceu dentro de um processo natural da formação familiar. Edson contou ao jornal já ter três filhos biológicos de um relacionamento anterior.
 Essas novas lapidações familiares evidenciam uma necessidade de dar continuidade à família. A infertilidade, enquanto casal, não foi vista como impossibilidade de realizar o desejo de serem pais para serem felizes. Com certeza esse processo de adoção não foi uma tarefa fácil, há muitos casos de homossexuais que entram com o pedido de adoção, mas somente no nome de um deles, sem mencionar que convivem com um parceiro por temerem que isso pudesse vir a prejudicar o processo de avaliação a que são submetidos.
Essa decisão mostra uma mudança de paradigma, na forma como a sociedade começa a entender a questão da participação dos gays dentro do seu contexto e que o importante é a condição afetiva de um casal – opção sexual pouco importa. O novo registro das crianças – de modo curioso – só deverá sair depois que o programa de computador do cartório for configurado para imprimir o nome deles e não ‘pai e mãe’ como consta hoje em todo registro civil de crianças, no caso deles irá ser informado ‘pai e pai’, trazendo para homossexualidade uma forma de sociabilidade.
Em contrapartida também podemos ler noticias como essa que vou expor, merecendo ser lembrada até como pedido de atenção, conscientização e alerta. Onde com absoluta certeza essa criança, na sua construção subjetiva, que já apresentava altíssimos níveis de esfacelamento, agora fica ainda mais fragilizada. (Jornal Agora, São Paulo – 28 de maio de 2009) – Noticia - Título: “Casal desiste de adoção e é processado”:
“O Ministério Público de Minas Gerais cobra na Justiça uma indenização de cem salários mínimos de um casal que devolveu a um abrigo de Uberlândia (556 km de Belo Horizonte) uma menina de oito anos, que havia sido adotada oito meses antes. A indenização é por danos morais. A menina morou com os novos pais até 29 de setembro. Na audiência final, o casal desistiu e devolveu a criança. Segundo a Promotoria, a devolução não teve explicação. A menina, que também não soube dizer o que houve, havia ido para o abrigo após constatação de maus tratos pelos pais biológicos. (AF)”.
Esse relato marca claramente um processo de devolução de uma mercadoria, a cultura consumista acentua a desvalorização imediata de suas antigas ofertas para que novas ofertas a preencham. A fragilidade dos vínculos humanos é experimentada a partir do momento de sua concepção como um misto de dádiva e maldição. A incerteza coloca um indelével ponto de questionamento sobre os prazeres extraídos de qualquer vinculo atual bem antes de as satisfações terem sido plenamente provadas e de fato exauridas, provocando danos colaterais imensos.   
Portanto, falar em adoção se torna difícil quando se sabe que quase toda adoção precede de um abandono, principalmente em um país como o Brasil que sofre tantos problemas sociais e humanitários. A adoção de uma criança por um casal homossexual, como tema social é algo novo, talvez a sociedade como um todo e as instituições em particular não estejam preparadas, mas a vida é feita de desafios.
Roudinesco acrescenta que: o movimento gay e suas aspirações aos ideais de família, geração e adoção de crianças é um tipo de movimento esperado, diante do crescimento e afirmação da identidade homossexual presentes neste estágio civilizatório que nos encontramos. E que comporta todas as mudanças que vêm ocorrendo em registros diversos – sexual, familiar, liberdades individuais etc. Pode-se considerar que o desejo de família implicado nos homossexuais é além do ‘direito ao amor’, também a questão da AIDS – epidemia e controle – uma das principais redes de prevenção e solidariedade em torno das vitimas, nunca antes vista, o que tem ajudado a despertar o desejo por uma descendência e uma continuidade.
Diante de tudo isso, a autora afirma com certa tranquilidade que: a família não está ameaçada, as novas famílias podem ser compostas, recompostas, constituídas por cônjuges do mesmo sexo, os bastardos podem ser reintegrados, operando novas configurações familiares. Gilles Deleuze, filósofo francês, já denunciara – a autoridade paterna – como sendo, na verdade, contingente.
Uma das grandes questões da contemporaneidade fica, portanto em como conciliar – o capitalismo de uma valorização sem precedentes ao EU – o fantasma da clonagem reprodutiva – a manutenção do sistema familiar do humano simbólico – uma vez que o discurso da ciência, aliado ao capitalismo especulativo, favorece a ilusão de que o homem tende a dominar tudo, inclusive sua reprodução, a partir da clonagem.
Embora o fator puramente biológico não seja mais um critério preponderante para a definição dos laços afetivos e critérios de parentesco, as novas formas de concepções impõem a necessidade de se repensar o incesto.
Mesmo tendo a família, desde o final do século XIX como horizontal e fraterna, os pais sendo convocados a uma função mais maternalizante, e o direito de convivência mais familiar; na medida em que as mulheres passando a ter o controle da procriação e, com isso, abraçarem uma carreira profissional, essa procriação no final do século XX, é entregue pela ciência ao poder das mães.
Roudinesco indaga: Qual será o futuro da família? “A família do futuro deve ser mais uma vez reinventada”. (2003: 199). Para aqueles que temem a dissolução ou extinção da mesma, tal instituição vem se comportando atualmente no mundo ocidental e garantindo corretamente a reprodução de gerações, mesmo assim ela nos oferece três argumentações positivas:
1 - o aborto não conduziu ao apocalipse;
2 - o casamento – não é mais sacralizado e em constante declínio – tornou-se um modo de conjugo, com ou sem filhos;
3 - os filhos gerados fora do casamento e/ou de divórcios consequentemente, integram-se aos novos modelos familiares;
Aos utopistas, que esperam que um dia a procriação seja totalmente separada do corpo humano, seja na fecundação e/ou na gestação, ela replica que: “para além de todas as distinções que podem ser feitas entre gênero e o sexo, o materno e o feminino, a sexualidade psíquica e o corpo biológico, o desejo de um filho sempre terá algo a ver com a diferença dos sexos.” (pg.132).
Aos pessimistas que pensam que a civilização corre risco de extinção pela possível barbárie instalada por clones, homossexuais, lésbicas, delinquentes das periferias etc.; ainda que se manifestem de maneira inédita, tais desordens não são novas e, sobretudo, como todas as pesquisas sociológicas mostram, ela faz a seguinte pontuação: “[...] não impedem que a família seja atualmente reivindicada como único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar”. (op.cit.: 197-198).
Roudinesco então, já no final de seu livro expõe, porém, que o próprio princípio da autoridade – e do logos separador – sobre o qual se baseou encontra-se atualmente em crise no seio da sociedade ocidental. Esse princípio se opõe, pela afirmação majestosa de sua soberania decaída, à realidade de um mundo unificado que elimina as fronteiras e condena o ser humano à horizontalidade de uma economia de mercado cada vez mais devastadora. No entanto incita incessantemente a se restaurar na sociedade a figura perdida divina de um Deus tirano. Em contraste com este duplo movimento, a família permanece ainda como a única instância capaz, para o sujeito de assumir esse conflito e favorecer o surgimento referencial a uma nova ordem simbólica.
Enfim, tínhamos como premissa primeira a orientação pelo par pulsão sexual/repressão sexual, que cedeu lugar a um imaginário da modernização social. Por esse imaginário, podemos entender como um conjunto de ideais de gênero masculino, feminino e relacionamento sexual, fundado numa concepção igualitária dos papéis sociais.
Na virada dos anos 70/80, surge uma cultura que tem como horizonte a pulsão de morte, cuja tematização privilegiada é o narcisismo e as vicissitudes da auto-agressão, auto-destruição e/ou auto-desvalorização – bem distante da repressão dos impulsos sexuais – porém, incapaz hoje de encontrar seu apaziguamento na cultura, num ideal, ou num modelo de felicidade ou de sociedade.
Em 1988, por iniciativa de Maristela Bresciani – historiadora da Unicamp – a (Editora Paz e Terra), publicou uma coletânea de artigos com o título “Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Após essa obra, vários capítulos de livro e artigos de revistas de Michelle Perrot foram traduzidos no Brasil. Para o público leitor brasileiro é considerada a grande mestra da História das Mulheres.
Para historiadora: Não é a família em si que a sociedade contemporânea recusa, mas o modelo excessivamente rígido e normativo que assumiu no século XIX. O que desperta desejo é conciliar as vantagens da solidariedade familiar com as da liberdade individual. A família é cada vez mais o centro da existência e deveria oferecer, num mundo de desestabilidades – abrigo, proteção e calor humano.
 Portanto, esse modelo excessivamente rígido e normativo da “sociedade patriarcal”, assiste ao seu declínio não nostálgico em relação a um modelo que tinha entre seus fundamentos a ausência de liberdades individuais.
Como já foi dito, vários acontecimentos nos levaram a mudanças sócio-político-econômicas que, já no século XIX – e coincidindo com a primeira onda do feminismo – diversas autoras escrevem sobre o direito das mulheres a ter um emprego e denunciam as desigualdades nas condições trabalhistas e salariais entre os sexos. Apoiadas nos movimentos feministas intensificaram o debate, sobre o lugar dos homens e o das mulheres nas relações sociais, no trabalho, na reprodução, nas questões demográficas etc. Na era da globalização, assistimos a multiplicidade/diferença, encaradas como condições sine qua non para a reescrita da História.
Porém, há que nos alertarmos para as possíveis instabilidades psíquicas dessas novas lapidações afetivas. Certamente, diferentes modos de procriação e de filiação foram passiveis de existência e, consideradas até marginais, fatalidades e/ou ignoradas. Vimos, no entanto no decorrer da historia, que os sujeitos dessas novas lapidações passaram agora a clamar por seus direitos. Tornando essas novas composições, portanto mais visíveis e, por conseguinte tecidas no campo social.
O que podem trazer essas novas lapidações de procriação e adoção? Conseqüências catastróficas para a organização social? Uma onipotência narcísica coloca a criança no lugar de objeto-fetiche encobridor da castração? A presença do par homem/mulher – passagem edipiana infantil – é um imperativo irredutível? E as posições religiosas, expectativas criadas em torno das concepções artificiais como sendo contra a natureza.
Não parando por aí os questionamentos possíveis e também não podendo de modo algum negar os efeitos que as transformações contemporâneas produzem no universo simbólico da cultura e no processo civilizatório, penso que, em decorrência dessas transformações, mediante as formas de novas lapidações familiares inseridas na cultura, e no meu envolvimento com a psicanálise, o que interessa entender trata-se da dinâmica pulsional de sustentação dessas novas lapidações – não comportando, portanto uma prescrição – de como esta dinâmica deva ocorrer.
A constituição do sujeito é relacional, como afirma a psicanalista Maria Rita Kehl, por não haver diferenciação sexual no inconsciente – não haver representação para a falta – é na cultura que a constituição se dá: “No inconsciente esta mínima diferença é indefinida. Ninguém nasce homem ou mulher; tornamo-nos homens ou mulheres” (Kehl, 1996, p. 13).
Os novos modelos de família sugerem que outros modos de produção de subjetividade são possíveis, ficando clara a inexistência, portanto de uma forma de organização familiar que venha ser referenciada como ideal.
Com tudo isso exposto, penso ser pertinente afirmar que quando nos remetemos ao novo são inseridos sentidos de certa forma ameaçadores, pois nos obrigam a reavaliar as representações que confortam nossas angústias, tantas coisas que contradizem opiniões tradicionais e que tanto ferem sentimentos profundamente arraigados são acionadas, que não podem deixar de provocar certa contestação, que por ser novo não sabemos como abordar.
Porém, se observarmos a humanidade dentro de um contexto histórico desde que o mundo é mundo, nos remeteremos a constantes crises e lutas. As mudanças trazidas pelo Renascimento; as conseqüências da Revolução Industrial no século XVIII; as duas Grandes Guerras; o próprio Capitalismo incipiente que fez, sobretudo, na contemporaneidade eminente do sujeito um adicto consumidor.
Nesse contexto, nossa tendência a sentir as mudanças atuais como particularmente ameaçadoras deve-se a questões, sobretudo narcísicas. Se nos sentimos ameaçados atualmente, é também porque  vivemos hoje no século XXI e não temos como avaliar a dimensão exata da violência gerada no passado. Além disso, toda mudança corre o risco de ser experimentada como um ataque narcísico. Existe uma brutal resistência do ser humano perante novos conhecimentos. (Freud – Narcisismo).
Existe hoje uma eclosão da presença feminina em lugares antes totalmente pertencentes ao masculino, e com isso sentimos os deslocamentos da qual a identidade masculina vem sendo confrontada na nossa contemporaneidade – uma crise de identidade masculina – fazendo surgir uma interrogação do sujeito homem para consigo mesmo, e para com as representações com as quais a identidade masculina fora uma vez construída.
O feminino nunca se sentiu na obrigatoriedade de provar seu feminino, no entanto o masculino passa agora por uma crise de representações de identificação, através dos quais o imaginário social define o que é ser homem. Talvez porque ainda não tínhamos presenciado nenhuma suposta revolução digamos – da espécie ‘macho’ – por eles mesmos. Ainda há o fantasma enigmático do homossexualismo reinando quase que absoluto.
 O sexo masculino já não é de hoje que deixou de ser encaixado como um todo na categoria de machão incurável e, vem conquistando desde a década de 60, o direito de se emocionar e usar cosméticos. Inúmeros autores mundo afora se dedicam a definir o que seria o novo homem. Hoje temos além dos heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transexuais também os metrossexuais, os übersexuais, os tecnossexuais, o novo machão, os metrogays, os metro-heteros, os snags, os homens verdadeiros, os emos, os new blokes. Termos esses vindos de criações midiáticas ligadas a necessidades mercadológicas do mundo capitalista.
Os metrossexuais são os cosmopolitas super preocupados com a aparência, conhecedores de moda e estética a miúde, um dos maiores ícones desse grupo é o jogador britânico David Beckham. 
Na edição 1919 da revista veja, podemos ver uma reportagem sobre: O rótulo da hora“homem do futuro” os übersexuais, (über em alemão significa: “acima”, “alem de”), uma referência ao homem nada preocupado com a beleza. Eles se cuidam, porém menos que os metrossexuais, são mais dinâmicos, estilosos, atraentes, contudo menos preocupado com a imagem, o exemplar do sexo masculino mais cotado pelas mulheres – um homem sensível e vaidoso, mas na medida certa, e inequivocamente heterossexual. Um dos ícones mundiais desse grupo é o cantor Bono Vox, vocalista da banda U2 e até o ator George Clooney.
Os tecnossexuais são os antigos nerds, revestidos de uma série de cuidados com a aparência. Preocupado com tudo que há de mais novo no mundo da tecnologia, também atentos a moda e as novidades da área cosmética masculina; o novo machão com todas as características típicas do machão, porem não vê problemas em chorar na frente dos outros; os metrogays são gays com traços masculinos; os metro-héteros são os heterossexuais com atitudes gays; os snags, (neologismo formado a partir das iniciais de sensitive new-age guy), tem sensibilidade apurada e entende perfeitamente as mulheres; os homens verdadeiros são aqueles que reúnem o melhor do homem atual, são participativos em casa, mas só fazem o que querem e quando querem; os emos (proveniente de emotivo) são os boys extremamente sensíveis e vulneráveis; os new blokes são os liberalíssimos, acham que homens e mulheres são absolutamente iguais.
Mas afinal o que é o homem contemporâneo? Essa crise masculina ao mesmo tempo em que abre para o mundo masculino a possibilidade de interrogar as suas relações com o Outro do amor, do desejo e do gozo, instala uma angustia, que vem referenciar o mal-estar masculino na atualidade.  
 O escritor e cineasta João Silvério Trevisan no programa “Café Filosófico” CPFL em São Paulo, do dia 17 de Maio de 2009, abordou o tema: “O Homoerotismo e o fantasma masculino”, a hegemonia histórica que o gênero masculino sempre gozou e que nunca lhe permitiu pensar-se e definir-se. Para ele, isso coube ao feminino que visto como apêndice imperfeito do masculino levou a se questionar e a configurar melhor sua identidade.
Porém, segundo ele, as grandes mudanças históricas nas culturas modernas estão levando o masculino a uma crise sem precedentes, que o fez descobrir-se como um gênero sem identidade clara, já que sua definição se respaldava numa hegemonia agora abalada.  A crise identitária que se instaurou mostra o masculino com um gênero em devir e até mesmo em estado de errância – que sempre se definiu em negação ao feminino.
Como resultado inevitável dessa busca identitária, Trevisan pergunta: O erotismo masculino existiria para além da sua vontade de poder? Nos porões onde culturalmente a masculinidade se acostumou a viver, é inevitável que uma das perguntas levantadas leve ao homoerotismo – tornado seu bicho-papão predileto. Para ele, as defesas contra o feminino denunciam o medo à castração, que é inevitavelmente escancarado quando entra em cena o fantasma da homossexualidade.
Portanto, ele ainda questiona: Em que termos o masculino poderá conciliar o ódio e a atração que sente por si mesmo? Que mudanças profundas serão necessárias para que o fantasma se torne apenas uma alternativa? Ele argumenta que: quando for possível mesclar – liberdade, determinação e doçura (sensibilidade) – muitas outras mudanças com certeza serão possíveis.
É muito comum ouvirmos a pergunta: Qual é a causa da homossexualidade? Na realidade, tentar explicar a sexualidade é uma das características do nosso século. Descrever o comportamento sexual, criar categorias e descobrir a motivação de tais comportamentos sempre foi um enigma.
Em Freud na sua teoria:Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” – (1905) – pode-se dizer, que até hoje por certos segmentos sociais ainda causa polemica, pois a primeira formulação sistemática sobre o tema subverte a ordem vigente, denunciando que não há nada de natural na sexualidade humana.
Freud elabora sua teoria principalmente a partir de problemas e hipóteses advindos de sua atividade clínica, a partir da tentativa de elucidação e tratamento do fenômeno da histeria. Deste modo, a idéia de infantil freudiana foi concebida através da observação do adulto e não da criança. Esse texto vem colaborar com a introdução do conceito de pulsão.
O grande embate da teoria dos Três ensaios é o da oposição entre normal e patológico, no que diz respeito à sexualidade, especialmente suscitada pelos trabalhos dos sexólogos pré-freudianos sobre a chamada “inversão sexual”, que era a grande chave das reflexões da sexologia da época. É com o conceito do inconsciente que ele abordará os problemas colocados pela sexualidade, não se trata para Freud em abordar o sentido sexual, como prática ou comportamento sexual, mas sim seu alcance nas teias do inconsciente. É possível até afirmar que o conceito de pulsão tenha tornado o conceito do inconsciente uma conquista freudiana definitiva dando a ele seu verdadeiro valor.
De acordo com Freud:
“O problema da inversão é extremamente complexo e inclui tipos diversos de atividades e desenvolvimento sexual. Deve-se estabelecer uma distinção rigorosa de conceito entre os diferentes casos de inversão, conforme o caráter sexual que foi invertido, o do objeto ou o do sujeito.” (Freud, 1905, p. 146, nota acrescentada em 1910).
Freud, uma vez que era frequentemente procurado por mulheres na sua clinica, notava que apresentavam toda ordem de sintomas, e eram também impedidas de viver livremente os prazeres do corpo. A psicanálise naquela época era acusada pela igreja de ser leviana e libertina, pois levaria as mulheres aos pecados carnais ao libertar ‘instintos animais’.
Na época da guerra, alguns livros de Freud foram queimados em plena praça pública já que os nazistas consideravam suas idéias de ‘judeu’ subversivas. Porém ele era um homem do seu tempo e sempre se viu intrigado com o fenômeno da atração sexual por pessoas do mesmo sexo.
Conforme Freud:
“A pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se destaquem os homossexuais, colocando-os em um grupo a parte do resto da humanidade, como possuidores de caraterísticas especiais. Estudando as excitações sexuais, além das que se manifestam abertamente, descobriu que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e que na realidade o fizeram no seu inconsciente. [...] Assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é fato evidente em si mesmo, baseado em uma atração, afinal de natureza química”. (Freud, 1905, p.146, adição de 1915).
Em determinados momentos, ao referir-se ao masculino e ao feminino ele usou termos de atividade e passividade; em outros, observa que se tratando de seres humanos, esta relação é insuficiente.
Ao longo de sua obra Freud, postula várias hipóteses para tentar explicar a homossexualidade, formas as vezes até contraditórias entre si, não conseguindo chegar a um consenso final. Essas hipóteses vão: desde o ‘perverso polimorfo’, na teoria dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, passando pelo narcisismo – onde considerou ser um traço humano –, passando pela passividade, pela hostilidade e pelo masoquismo de Além do Princípio de Prazer. Ele também passou a considerar a causa da homossexualidade tão misteriosa e enigmática quanto à origem da heterossexualidade, e em "O Ego e o Id" livro de 1923, estava mais propenso a acreditar na teoria da bissexualidade infantil.
Tentando pontuar de maneira sucinta, observamos que:
1 - A pulsão não tem objeto pré-determinado no ser humano.
2 - Tanto a ‘homossexualidade’ quanto a ‘heterossexualidade’ se desenvolvem socialmente, partindo de certas disposições individuais, e ainda sobre ‘homossexualidade’, podemos incluir numerosos fenômenos de diversas ordens.
3 - Todos os indivíduos de nossa cultura possuem uma corrente libidinosa heterossexual e uma homossexual; a determinação da orientação predominante depende de uma série de fatores não completamente conhecidos.
            Pelos estudos da Antropologia, Literatura e outras ciências afins, podemos observar que sempre houve, nas mais variadas épocas e lugares, diversas manifestações do homoerotismo, as vezes até socialmente aceitas. Na questão das novas lapidações familiares é, portanto nesse plano do direito de família, e em particular no da filiação, que as uniões homossexuais encontram as maiores dificuldades.
Podemos diante disso, constatar que a humanidade está sempre em crise diante o referencial simbólico da sua época, e agora na atualidade parece mais fragilizada. O imaginário cultural do momento sócio-histórico, no qual estamos inseridos, vem promovendo um mal-estar inerente à cultura. Mudanças evidentes vêm se operando na sociedade contemporânea no que diz respeito às relações masculino/feminino.
Se considerarmos a representação do masculino construída pelo modelo patriarcal, é neste contexto que a idéia de um declínio do masculino encontrará sua razão de ser.  Todas estas questões nos levam ao declínio da figura paterna, ao declínio do próprio Édipo.
Essas novas lapidações familiares, por trazerem o novo – o estranho – provocam uma ameaça para a contemporaneidade. O Outro passa a ganhar o mesmo valor de um objeto, de um objeto – real – não mais um valor memorial, efetivando-se assim uma crise no simbólico. As relações, portanto, são diretas, cruas, sem significados e significações. Cuidadores familiares à deriva, impotentes; comportamentos irracionais, a presença da violência cada vez mais freqüente, desafiando toda apreensão através de categorias aprovadas ou não pela moral, universos sociais totalmente desestruturados, uma verdadeira epidemia de gozo constante, dissimulando o traumatismo que está no centro de toda formação humana. (Freud – O Estranho).
Como coloca Laurent, em seu livro “A Sociedade Do Sintoma”, é preciso produzir o verdadeiro, para assim introduzi-lo novamente no discurso habitual, no mal-estar na civilização. Uma das formulações da perversão que se apresenta no discurso lacaniano é exatamente essa tentativa de reintroduzir o gozo no Outro, tratando-se de uma via perversa. (Pg. 40)
Conforme Laurent:
“De um lado, assistimos a ao final do patriarcado e seu correlato, o declínio da dimensão trágica do pai; do outro, presenciamos a multiplicação das formas da família conjugal. A família não se assenta mais na linhagem patriarcal, e sim nas formas de conjugo”. (Pg. 41).
A família inserida no contexto social relaciona-se à posição ocupada por cada um de seus membros, uma vez que, em torno da posição da tríade – pai, mãe, criança – localizam-se inúmeras expectativas de comportamento, de obrigações e de direitos, que nada mais são do que os papéis atribuídos a cada um desses indivíduos, conforme o conjunto dos valores socialmente estabelecidos.
Como conjugar os componentes culturais e sociopolíticos? Hoje, a sociedade democratizou-se, vivemos uma época de excesso, de fluidez, de individualismo e de precariedade. De excesso de ofertas, de informação, de apelo aos consumos, materiais simbólicos e mediáticos; de fluidez, mobilidade e maleabilidade das estruturas sociais e das identidades coletivas; de individualismo e desinteresse perante o outro, o diferente, o migrante, o estranho; de precariedade das relações e vulnerabilidade do indivíduo, marcado por sentimentos de perda, de insegurança e de falta de oportunidades. Porém, a sociedade permanece atravessada por múltiplos contrastes, entre o velho e o novo, entre o urbano e o rural, a capital e o interior, a modernidade e a tradição.
Novas lapidações familiares vão tomando forma, e com isso há grande introdução de novos direitos e deveres parentais que passam a ser discutidos. Se observarmos a relação de conjugo, mesmo sabendo que a impossibilidade de procriar ou a ausência de projeto de ser pai não constituem de forma alguma, um impedimento à união ou a um motivo de ruptura dos laços, a filiação na contemporaneidade marca um lugar instável na natureza do ato de conjugo.
O senso prático vem substituindo a inspiração humanista em função da idéia de modos de produção capitalista. Com o discurso da ciência em ascensão, liberando os indivíduos das teias da autoridade e da tradição, os pais vão se sentindo dispensados das funções de proibição e autorização para com seus filhos.
Sabemos que a inscrição da criança no discurso social, a partir do século XVII, enquanto categoria deu-se essencialmente com os discursos médico-científico e pedagógico, ambos constituídos pelas mudanças histórico-sociais decorrentes daquele momento histórico. Para além de um fato natural, a infância, tal como é compreendida hoje, é uma produção determinada, pelas transformações dos sistemas político-econômico-social e libidinal ocorridas ao longo dos últimos séculos, levando-se em conta o desenvolvimento desse avanço do capitalismo.
Fenômenos como a globalização e os veículos de informação nos quais as crianças estão conectadas, as inserem num espaço virtual, onde a promessa é gozar infinitamente o espetáculo da vida. E como fica a criança?  
Lendo Freud e Lacan, podemos observar que o recalcamento edípico é a amnésia do infantil e que através do conceito de real, enquanto algo contra uma autoridade legítima ou constituída a toda definição infantil, o fato de que cada um de nós um dia foi criança, passa a impossibilitar o saber do que se trata ser exatamente uma criança.
A representação oficial da infância na sociedade encontra-se marcada pelos valores burgueses de liberdade e felicidade. Para fazermos uma tentativa de como compreender a criança na contemporaneidade, iniciarei pela abordagem freudiana clássica onde o bebe é situado como ideal do eu, ideal do casal, chamado por Freud de “Sua majestade o bebe”. (Freud, 1914) É por intermédio da criança que a família se distribui. Se observarmos a metáfora edipiana clássica: o pai responde ao desejo da mãe, o pai intervém sobre o desejo da mãe para produzir significação fálica/lei.
Freud traz, com o édipo, uma teoria antropológica da família e da sociedade tendo como base dois elementos: a culpa e a lei moral. O Complexo de Édipo freudiano apresenta como base dois desejos recalcados: desejo de incesto e desejo de matar o pai – dois tabus do totemismo – o interdito de matar o pai – totem e o interdito do incesto (proibição de relacionar-se com as mulheres do clã). (Freud, 1912-1913). Considerado, portanto universal e fundador da sociedade humana.
Com o Complexo de Édipo, Freud (1924 [1923]) responde, no final do século XIX, ao declínio da autoridade paterna, inscrevendo a família no centro de uma nova ordem simbólica centrada no filho-pai herdeiro do patriarca mutilado. Com o declínio da soberania do pai, é permitido à sociedade o pertencimento a algo novo, a emancipação da criatividade.
Essa criação edipiana freudiana contribuiu para o entendimento da não abolição da família, sem buscar nem a restauração da tirania do patriarca, nem a do matriarcado, postulando a natureza do inconsciente e do desejo entre os seus membros, reecentrando a antiga ordem patriarcal.  Hoje podemos observar certa revolução da afetividade à criança, sendo colocada num lugar a ela concedido exaltivo, incluindo-se também as novas práticas de contracepção e/ou gestação. Isso tudo nos transporta a uma modificação intensa na dinâmica e estrutura das famílias dos séculos XX e XXI.
Ao nascer, a criança é imediatamente inscrita pelos pais numa cadeia de desejos, na qual lhe é assegurado um lugar. Esse lugar é, desde sempre, marcado por uma operacionalidade fantasmagórica, apresentada tanto pelos pais ou responsáveis e/ou por aqueles que a rodeiam. As fantasias envolvidas abrangentes de uma gestação e/ou uma adoção, não pertencem somente à mulher, mas igualmente ao homem e aos membros da família em geral.
A criança chega ao mundo em um lugar totalmente adulto, cujo sinal de um tempo, ou sintoma de uma época, ela é vista na contemporaneidade, desde o nascimento dentro dos argumentos que organizam – o discurso do capital e do consumo – a criança já tem então um papel pré-definido no seio social.
No atual contexto do homem contemporâneo, permanece a ilusão de repor nas crianças aquilo que lhe é faltante: na medida em que nada se pode saber do futuro, na fugacidade do presente; o sujeito sente como única possibilidade discursiva aquilo que já lhe foi ofertado, assim, esse discurso abre uma dimensão histórica na qual a narrativa pode ser considerada uma tentativa de reparar algo que no passado teria escapado a uma explicação.
Em sentido global, a visibilidade da criança ampliou-se e fez dela um alvo de investimento afetivo até então inexistente. A saída do lugar de um quase animal – que podia ser objeto de troca, na era medieval – para um lugar de destaque no projeto civilizatório da humanidade. Foi assim que, na contemporaneidade, o lugar social da criança assumiu um papel bem distinto.
Hoje em dia é viável dizer que a anulação da diferença entre o adulto e a criança é um dos fatores que mais colabora para com a falta de disciplina infantil. Cabendo marcar que é dúbia essa não diferenciação, pois a criança é uma criação da modernidade. Hoje a lógica do capital tanto iguala quanto diferencia adultos e crianças – iguala na medida em que transforma crianças em consumidores potenciais, tal qual os adultos, marcando a diferenciação com a criação de um mercado infantil, apelando para o desejo lúdico como força motriz que impele as crianças a consumirem, ou melhor, forçar os pais a consumirem para elas. Na tentativa do ter para a criança, não é raro que ela não queira nada – não comer – não aprender – não brincar etc. Por outro lado, para se sentir amada, é comum que ela queira tudo: tudo comprar – comer – fazer – brincar etc., o excesso passou a ser uma característica do nosso tempo.
Atualmente assistimos quase que constantemente notícias que as envolvem em cena – na TV, revistas e jornais – como vítimas de violência, espancamentos, assassinatos, estupros, o uso do corpo da criança como fonte de prazer, e a prostituição da criança a oferece como objeto para o gozo do Outro, objeto fetiche usado na perversão, numa dimensão seriada que deixa perplexidade e reações de indignação profundas na sociedade. Hoje mesmo, pela manhã lendo meu jornal matinal: (Jornal Agora, São Paulo – 28 de maio de 2009), me deparei com a seguinte crueldade: “Menina de 5 anos criada por cães é achada na Rússia”. Uma notícia que deveria chocar qualquer ser da raça humana, cujo contexto diz:
“Uma menina de cinco anos passou a vida trancada em um apartamento sendo cuidada por cachorros e gatos na cidade siberiana de Chita, Rússia, Foi colocada sob os cuidados do governo ontem. De acordo com os policiais que a encontraram, a menina não fala russo e age como se fosse um cachorro”.
De acordo com a noticia exposta no jornal, foi a mãe quem chamou a polícia; a menina chamada Natashenka tem mais três irmãos, a mãe relatou que a filha fora sequestrada e que não tinha permissão para vê-la, ela estava vivendo com o pai e com os avós. Quando os policiais chegaram lá a encontraram com os animais, ela foi por cinco anos, criada por cachorros e gatos e nunca saiu à rua. Não tomava banho, usava panos sujos e tinha claros atributos de um animal, o lugar onde estava confinada não tinha sistema de água e esgoto. Os médicos que prestaram atendimento a menina, disseram que, a primeira vista, ela não apresentava graves deficiências psíquicas, embora aparentasse ter dois ou três anos. De acordo com as assistentes sociais, quando saem do quarto onde está sendo cuidada, ela late e arranha a porta. O pai encontra-se foragido podendo ser condenado a três anos de prisão.
Contudo essa noticia não é considerada como algo incomum na Rússia, não sendo, portanto o primeiro caso a ser levado a público. Não há de fato, como não escutarmos pedidos de justiça, num clamor social que se indigna por não compreender, como um ser que merece tanto cuidado e proteção, possa estar tão exposto ao horror, ao terror, aos abusos e às intolerâncias; partindo dos adultos humanos essa tirania em quase todos os casos. O adulto contemporâneo tem um linguajar muito irônico para com suas crianças.  
A base da construção de uma sociedade é a formação de crianças e jovens, amparados contra a violência. Com as mudanças apresentadas na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, hoje no século XXI, ela é considerada um sujeito de direito e um sujeito por inteiro, racional e pode tomar decisões, mesmo assim para as crianças ficam as consequências e os altíssimos prejuízos subjetivos do novo real. As transformações sociais diante dessas novas lapidações familiares, e a queda da imago paterna estão provocando mudanças que irão estabelecer grandes alterações na formação da criança deste e dos próximos séculos.
Para Jacques-Alain Miller, (difusor da psicanálise lacaniana, logo apos a morte de Lacan – atualmente proferindo seminários como Lacan): no seu texto “Bonjur sagesse” – (1995), observa que Lacan assinala o declínio da imago paterna já nos anos 30, mais precisamente em 1938, no seu texto sobre “Os complexos familiares: na formação do indivíduo”, no qual, embora comente sobre o declínio da imago paterna, não deixa de dar ao pai a função de encarnação da Lei, função contraria à utópica. Pai que zela de modo que não ocorra uma virada utópica dos ideais da cultura.
Lacan nos apresenta então a paternidade como simbólica e significante, através da nomeação da imago paterna e com isso pretende determinar as causas de sua decadência. Ele referiu-se a uma mudança das formas institucionais na família considerando a existência de um declínio da função paterna, porque esta se encontrava determinada pelo processo de metamorfose das configurações dominantes onde o mal-estar já se encontrava de certa maneira presente na civilização.
Para Lacan o interdito da mãe é uma obrigação fundamental, quando interpretou a esfinge do mito de Sófocles como a mãe, pôde ver na sua morte a emancipação das tiranias matriarcais e, assim, atentar-se em separar o feminino do materno; passando a teorizar a existência de um pai barrado - barra essa que visa diretamente à mãe - por trás do pai imaginário proposto por Freud e transforma o Nome-do-Pai em um conceito psicanalítico.
O Nome-do-Pai abre uma outra ordem de realidade, ao mesmo tempo em que redimensiona e significa a ordem de realidade constituída pela mãe e seu infans. O pai é um significante que inaugura a substituição das coisas pelas palavras, ao substituir o desejo da mãe, instaurando o mundo humano onde as palavras criam coisas.
Para Miller, a família é constituída pelo Nome-do-Pai, pelo desejo da mãe e o objeto a. A família não é um conjunto de laços ou deveres, ela é essencialmente unida por um segredo, ela é unida pelo não dito – resíduo (desejo).
Lacan (1968-9) afirma que: há uma função de resíduo – desejo – exercida pela família, a despeito de todas as transformações em sua forma de organização, assegurando a ela uma transmissão irredutível. Nessa transmissão, não se trata da ordem das necessidades e da realidade, mas da ordem de uma dimensão simbólica – de um desejo que não seja anônimo. Em “Outros Escritos”, no texto – “Nota sobre a criança”: Essa função de resíduo exercida e, ao mesmo tempo – mantida – pela família conjugal, na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão, de uma ordem constituinte da subjetividade implicando a relação desejo/não anonimato. (pg.42).
Porém esse resíduo é muito enigmático, posto que pertencente da mãe cuidadora, (trazendo a marca de um interesse particularizado – não universal), nem que seja por intermédio de suas próprias faltas. Definindo o pai, na medida em que “seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo”, (pg.43), vetor esse da Lei no desejo do Outro. Portanto nos apercebemos de que a autoridade se funda inicialmente sobre o que é autorizado, e não sobre o proibido.
Para podermos entender melhor, voltando ao Édipo, nele consideramos três tempos: no primeiro o pai funciona como um simbólico generalizado; no segundo aparece a parte negativa do pai. Tratando-se, portanto de um pai proibidor – proíbe a mãe de reintegração – proibindo a criança de ter acesso à mãe. Já no terceiro tempo aparece o pai doador, aquele que dá ao menino as identificações que marcam a potência, a chave da identificação masculina. Freud em “A organização genital infantil” diz sobre falo/castração, o falo é o símbolo que inscreve a falta – na versão de um pai proibidor.
Lacan no “Seminário 17” vai para além do pai proibidor. A perda de gozo, a falta, não advém de um pai que proíbe, é produzida pela inclusão do sujeito na linguagem. A perda de gozo não se trata da castração do pai, mas trata-se da inclusão do sujeito na linguagem. Ele com isso teoriza então para além do Édipo, situando o pai em outro lugar, pontua que o pai se torna um operador estrutural real, o agente da castração, possibilitando esta inclusão no campo da linguagem. Lacan de forma alguma chegou a dizer, explicitamente, que o paradigma da psicanálise não é o complexo de Édipo, porém deixou muitas indicações a esse respeito.
Neste mesmo seminário, Lacan fala de uma entropia (o tecer uma linguagem) de gozo. O sujeito se inclui no Outro e há uma perda automática de gozo, sendo recuperado sob as formas de objeto a, nomeado neste seminário como objeto mais-de-gozar. O gozo, que é perdido automaticamente quando entra no funcionamento da linguagem, não se encontra perdido totalmente pela existência de uma entropia facilitadora; ele é recuperado através do objeto mais-de-gozar, que chama de objeto a causa de desejo.
Submetendo a família a uma visão crítica da razão, emprestada da antropologia moderna e a uma leitura freudiana, Lacan trabalha a revalorização simbólica do pai através do interdito obrigatório da mãe. Ele nos fala que não há instinto familiar natural, que a família é uma invenção simbólica, é uma resposta simbólica ao real do sexo, já que não se pode escrever simbolicamente a relação sexual entre um homem e uma mulher, a família escreve, portanto a relação pai-mãe. O pai digno de ser amado e respeitado enquanto tal é um homem real e encarnado que coloca a mulher no lugar de objeto a. Este objeto aparece, em diferentes momentos na teoria lacaniana e de diversas maneiras.
 A primeira apresentação de Lacan do objeto a está no contexto do Estádio do Espelho, tratando-se de um objeto imaginário. Em uma segunda apresentação, o objeto a é recortado pelo simbólico, posto que tudo que é imaginário torna-se simbólico. Em uma terceira apresentação o objeto a é colocado como sendo causa do desejo. No Seminário 5, o objeto a aparece como objeto de desejo, significando o objeto almejado pelo desejo do sujeito. Uma vez que alcançado, podemos concluir que o desejo desaparece. Lacan então inverte esta idéia no Seminário 10, falando da angústia, colocando o objeto a como causa de desejo, nenhum objeto pode, portanto satisfazer o desejo: o objeto a não está na frente, mas detrás, causando, empurrando o desejo, um objeto que não pode ser alcançado. O traço unário – ponto de irrupção de gozo – inaugura esse processo enquanto primeiro afeto/efeito de linguagem.
Nos “Seminários 10 e 11”, Lacan nos mostra que o objeto a, causa de desejo, nada mais é que: objetos oral, anal – objetos freudianos –, o objeto nada; de uma forma que a visão e a oralidade se mantêm inalteradas.
Se, por um lado, o discurso capitalista, tenta tamponar as faltas do seres humanos, mesmo sem conseguir êxito com uma escassez de oferta; por outro lado, alimenta-se desse engodo. Lacan nos aponta a angústia justamente quando o objeto a, objeto causa do desejo, aparece, fazendo desaparecer a falta, a angústia aparece justamente no faltar essa falta – extermínio do fator desejante.
No texto “Notas sobre a criança”, já mencionado, Lacan também ressalta a existência de dois grandes tipos de sintoma: o primeiro refere-se ao par familiar e pressupõe o exercício da função paterna; já o segundo se atém única e exclusivamente à subjetividade da mãe, de forma que a criança encontra-se aberta à captura fantasmática do fantasma materno. Ele nos coloca que o sintoma da criança é o sintoma do casal parental, que para além de serem pai e mãe, há um casal, ou seja, há um encontro sexual entre dois sujeitos – homem/mulher –, e vem tratar de que lugar é dado, nesta relação, ao tratamento da falta. Neste contexto ele expõe sobre a importância do lugar que a mãe dá ou não à palavra do pai, vindo a portar ou não, a inscrição do Nome-do-Pai.
A criança não é mais como um ideal dos pais como Freud abordou, cuja metáfora edipiana clássica – o pai responde ao desejo da mãe para produzir significação fálica – sendo sua verdadeira função a de unir um desejo à lei, agora ela passa a ser, tomada no gozo – o seu e/ou de seus pais. A criança é o objeto a e, a partir disso, a família se estrutura, se constituindo pela maneira como a criança é o objeto de gozo da mãe, da família e, para alem dela, família/civilização. A criança é o objeto a liberado, uma produção. A criança – objeto a inclui um modo de gozo pelo fator corporal. Este objeto a, que a criança realiza, pode ser lido no Seminário 16: de um Outro ao outro, articulado ao problema da família já que há uma falta no Outro. (Lacan 1968-9 - Laurent, 2007 Pg. 45).
Em Lacan vamos encontrar o eu definido pelo narcisismo, e severamente distinguido do sujeito (Eu), em sua divisão pelo sintoma, onde o real, o simbólico e o imaginário se fazem presentes embrionariamente. A tarefa que se apresenta à criança nesta hora é a articulação daquilo que é real e o que é imaginário, sendo realizado pelo simbólico, através da linguagem.
No Seminário 22: R.S.I., Lacan diz que: “[...] um pai só merece o amor e o respeito [...]”, sendo de fato pai, “se faz de uma mulher o objeto a, que causa o seu desejo”. O sintoma é o lugar da verdade do sujeito, é uma mensagem, um enigma a ser decifrado; nele está presente o cerne da subjetividade.
Como nos diz Laurent, em seu livro “A Sociedade Do Sintoma”, no seu texto “As novas inscrições do sofrimento da criança”: “A criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como objeto a na fantasia”. (Lacan, 1969: 374)” (Pg. 43).
De forma resumida, esse objeto a nada mais é do que a criança capturada não em um ideal, mas no gozo, de seus pais e de seu próprio, aqui é a criança que vem saturar a falta materna – seu desejo – vindo tamponar o que diz respeito à falta da mãe não como ideal, mas sim como objeto.
Conforme Laurent:
“A criança é o objeto a, vem no lugar de um objeto a, e é a partir disso que a família se estrutura. Ela não se assenta na metáfora paterna, que era a face clássica do complexo de Édipo, e sim na maneira como a criança é o objeto de gozo da mãe, da família e, para alem dela, da civilização. A criança é o “objeto a liberado”, produzido”. (Pg. 45).
Laurent nos fala da criança – objeto a – como elemento central em torno da qual uma família está estruturada, onde a referência não é mais o pai ideal, mas a criança como aquela que condensa o gozo familiar, na expressão de alguns destroços ou das tiranias impactantes veladas pela civilização.
O psicanalista Jorge Forbes, em seu texto: “Emprestando Conseqüência (quando Freud não explica)” logo na introdução nos diz:
“Há duas clínicas no ensino de Jacques Lacan: uma primeira, a do significante, a que se baseia na estrutura do inconsciente como uma linguagem, e uma segunda, a clínica do gozo, ou a da identificação ao sintoma, que trata dos fenômenos que ultrapassam a captura da singularidade do sujeito pela palavra. Este é o grande debate, no momento, na Associação Mundial de Psicanálise. É importante por duas razões: primeira, por colocar em relevo um Lacan do significante em contraste a um outro Lacan, mais além da palavra em associação livre e, segunda, é conveniente para nos apercebermos que a primeira clínica é coerente e adequada ao sujeito da era industrial, aquele marcado pelas identificações verticais (pai, pátria, moeda, fronteiras), enquanto a segunda clínica prepara o terreno para o tratamento dos novos sintomas do sujeito da era da globalização, que sofre um desvario do seu gozo, decorrente da quebra dos ideais”. (http://www.fflch.usp.br/df/geral3/jorgeforbes.html).
Na primeira posição, a criança responde pelo seu sintoma do ponto de vista fálico, identificada ao desejo do Outro, na segunda posição, investiga-se a versão que a criança tem ou é do objeto a, e como ela pode separar-se do Outro, já que se encontra identificada ao gozo do Outro. A definição do sintoma como substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado jacente nos remete a criança como o objeto a, que vem tamponar o buraco real que excede a satisfação fálica.
Vou tentar explicar melhor: na segunda posição, trata-se de haver ou não, a inscrição do Nome-do-Pai, como algo que barra o desejo da mãe, implicando em uma substituição. O próprio sintoma é uma substituição de um significante por outro, inscrevendo uma falta. Se esta falta se inscreve, a criança é neurótica, sendo então capaz de apresentar sintomas. Mas se o Nome-do-Pai não se inscreve e o desejo da mãe não é barrado, a criança irá incluir-se em uma estrutura psicótica.
Lacan com a inserção do Nome-do-Pai marca uma diferença extremamente necessária à clínica psicanalítica, definida pela maneira como o sujeito se relaciona com o significante, na estrutura de linguagem. É necessário que o sujeito tenha pertencimento à linguagem. Pertencer à linguagem significa entrar no jogo do simbólico, numa lei simbólica através da introdução do significante Nome-do-Pai.
Segundo Lacan, “o Nome-do-Pai é o significante do Outro enquanto lugar da Lei”, um significante/operador formidável que vem instaurar no sujeito a lei que ordena seu mundo, operando a função da castração e introduzindo o sujeito na neurose. Contudo para o sujeito psicótico, no momento em que deveria surgir este significante/operador se apresentando como possibilidade às significações diversas, o Nome-do-Pai não se operacionaliza. Originando, portanto o mecanismo específico da psicose – a foraclusão do nome-do-pai.
A criança fica capturada na estrutura fantasmática da mãe, tornando-se um objeto da fantasia materna, ou seja, um objeto condensador de gozo, objeto esse que não está simbolizado, que não entrou nas teias simbólicas por uma falha na simbolização. Não havendo então uma transmissão do Nome-do-Pai – não sendo inscrito. Esta falha, do lado da mãe, é subjetivada pela criança como foraclusão do nome-do-pai. Portanto, quando a metáfora paterna consegue inscrever o Nome-do-Pai, temos a neurose, se não se inscrever temos a psicose.
Na última fase do trabalho de Lacan há uma modificação do estatuto do pai. De forma sucinta podemos dizer que do pai edípico passou para os Nomes-do-Pai, indicando que o significante/operacional do Nome-do-Pai, que inscreve o sujeito na lei, não é uma operação válida para todos. Cada um tem seu significante do pai ou até vários significantes do pai.
Para a psicanálise não se trata de se apresentar como defensora da autoridade paterna – função paterna, percebendo na sua ausência a explicação de todos os males. A segunda clínica de Lacan nos mostra o quanto ele estava atendo às mudanças nos laços sociais e às novas lapidações de angústia advindas do Nome-do-Pai, podendo ser pensada como uma tentativa de compreensão das novas formas de sintoma.
Nessa concepção teórica elaborada por Jacques Lacan, “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar” (Lacan, 2003, p. 369). Por isso o sintoma pode representar a verdade dos pais.
 O sintoma psicanalítico foi pensado por Freud como a mensagem inconsciente dirigida pelo sujeito ao Outro da cultura representado na figura paterna idealizada. É preciso encontrar os modos singulares de relação do sujeito contemporâneo ao pai - enquanto lei que organiza a relação do sujeito ao real – pois não existem mais ideais universais de identificação.
Na atualidade, estamos sob o legado da exigência de uma satisfação, de um gozo incessante, resultando na dificuldade crescente de um engajamento simbólico na relação do sujeito ao Outro. Encontramos-nos onde não nos é favorável à dimensão da transmissão e da filiação, o significante passa a servir, portanto mais ao gozo do que à comunicação, colocando o gozo fora da castração. (2004-05, p. 170).
Lacan correlaciona considerações clínicas sobre o Complexo de Édipo, analisando sob as vertentes da psicanálise, da antropologia e da sociologia o édipo e a psicopatologia das relações entre pais e filhos. Assim reescreve a família psicanalítica, organizada segundo as imagos paternas e maternas, dando a ela a responsabilidade pela humanização do indivíduo e o despontar da subjetividade. Mantém, como simbólica, a revalorização do pai, contudo opondo uma moral de obrigação a uma moral da aspiração.
Embora sendo ele sempre fiel as posições freudianas, abre um campo bem diferente do complexo de Édipo, a figura paterna toma contornos drásticos quando trata do pai real – uma versão para o pai, uma pai-versão (père-version) no sentido de uma versão em direção ao pai. Isto nos conduz à última formulação de Lacan, na qual a perversão, não é senão uma (père-version), sendo lida em duplo sentido – versão em direção ao pai/versão do pai. Instalando-se, assim, para todos os homens, uma divisão advinda do ambíguo mandato père-verso – o que pode e o que não pode ser.
Divisão que, é apresentada por ele, pelas fórmulas: "Todos os homens estão submetidos à função da castração" / "Existe um que não se submete à função da castração". E no que diz respeito às mulheres, por se encontrarem numa posição de incompletude, escapam da père-versão, desde que não façam de seu filho o seu fetiche, a sua père-versão. A partir daí, torna possível formular as condições estruturais ideais para uma travessia satisfatória do Édipo, pontuando as categorias de neurose, psicose e perversão como estruturas fixas e imutáveis.
O Édipo, como toda representação fantasmática, é ao mesmo tempo universal e singular. Mas a maneira como esta representação é tratada socialmente é histórica e variável no espaço e no tempo. As funções de proibição e autorização, prerrogativa do Nome-do-Pai, que oscilam nas novas lapidações familiares, sobrecarregam a escola e deixam crianças e adolescentes entregues ao risco da desorientação – sem rumo.
Em uma entrevista concedida ao “La Nación” Suplemento dominical de 3 de junho de 2007, Éric Laurent – um dos continuadores do ensino de Jacques Lacan, delegado-geral da Associação Mundial de Psicanálise, uma das maiores referências na clínica com crianças na psicanálise de orientação lacaniana, longe de estar fechado em seu consultório – sobre o tema: “Como criar as crianças”, nos diz que há uma pluralização completa em torno dos laços sociais,  e sendo a família uma instituição que permite bens e direitos e a articulação entre gerações, ele crê nesse sentido, havendo uma conversação através da civilização, que é uma pergunta que dá muitas respostas, que alguns aceitam, outros recusam e outros querem mantê-la de forma definida como um ideal determinado.
Ele afirma que hoje o que não falta é um discurso acerca do que é um pai para a família, ainda que esse seja ausente. Lacan tratou de separar o pai do Nome-do-Pai não como ideal, ou seja, da função paradoxal proibição-autorização, tentando com isso inscrevê-lo ou não para além dos sujeitos. Mesmo assim Laurent comenta que nenhuma criança quer viver sem pai, as primeiras vitimas a sofrer o impacto dessas mudanças são elas mesmas. A criança quando inserida no meio sociocultural é confrontada com o fato de que fora da família circulam outros discursos, por exemplo: quando ela é concebida por fertilização assistida com doador anônimo, as formas de patologia do laço social com as crianças e entre as crianças podem ser múltiplas.
Segue dizendo, não em tempo muito distante, a articulação com a religião, a moral, o Estado, o exército, tinham um peso, havia uma variedade de instituições. Cada vez mais se reduz o peso destas para centrar-se em uma só instituição que hoje é a escola. Acolhendo as crianças e tratando de ordená-las a partir do seu saber. Uma das dificuldades para as crianças de hoje é a questão do tempo em que elas permanecem na escola, o que não acontecia em outras civilizações.
O mais curioso e que transparece como uma epidemia é o fato de que elas não podem renunciar a este gozo do corpo a corpo, das brigas, a agressão física, sem falar da violência desproporcional característica das turmas de adolescentes. Todo este sofrimento funda a idéia de uma patologia da infância e da adolescência. O discurso que hoje ouvimos das instituições escolares é que as crianças não suportam as proibições, são intolerantes as regras.
Comenta que, na contemporaneidade todas as crianças têm direitos iguais, ao colocá-las no mesmo contexto, há patologias que entram nesse contexto escolar que antes não eram de seu pertencimento. Olhando por outro prisma, com o aumento da precariedade do mundo do trabalho, em sentido crescente, pela pressão existente, as crianças se encontram de certa forma sem rumo.
 Ocupando o lugar da mãe temos agora a televisão, que com seu mau uso vem se tornando medicamentosa, funcionando como hipnótico, sua utilização crescente afeta tanto as crianças e/ou adultos. Porém, a televisão não permite vincular/unir os membros da família; se tratando de um único ritual o fazer uma refeição diante dela; falar sobre ela ou ficar em silêncio diante desse aparato; esse mecanismo permite o mínimo ou nada uma articulação da posição paterna entre proibição e autorização para com seus filhos.
A instituição escolar se torna, portanto mediadora de uma articulação desta função paterna. Os professores aparecem como representantes dos ideais e isto aguça a oposição entre crianças e o dispositivo escolar, transformando as patologias, que não podem se reduzir estritamente a algo biológico nem a algo cultural, se sobrepondo dentro do dispositivo escolar.
Laurent sublinha também, a importância da literatura no infantil, pois alguns escritores explicitamente pensaram em elaborar, com sua obra, uma maneira de proteger as crianças da tentação do niilismo, e orientá-las na cultura e nas dificuldades da civilização, apresentam figuras nas quais tornam possível a articulação do desejo. Em O Senhor dos Anéis, por exemplo: Tolkien fez uma tentativa de propor às crianças, aos jovens, uma versão da religião, um discurso sobre o bem e o mal, uma articulação sobre o gozo, os corpos, as transformações do corpo, todos esses mistérios do sexo, do mal, que atravessa uma criança; versões da paternidade.
            Terminando essa entrevista de maneira exemplar, ele nos diz: Precisamos criar as crianças de uma maneira tal que se apreciem a si mesmas, que tenham um lugar, e que não seja um lugar de desperdício. Na atual economia global, o único trabalho que pode inscrever-se é o da alta qualificação, ao qual nem sempre, as crianças vão conseguir chegar até tal patamar para ter acesso. Há crianças que não vão nem tentar e, apesar disso, é necessário que haja um lugar, uma possibilidade na nossa civilização. Não podemos abandoná-las, é o desafio mais importante, o dever que temos perante elas. Conceber um discurso que possa alojá-las dentro da economia global, agradecendo se despede.
Penso que o que vai diferenciar as crianças, no entanto é o que diferencia cada ser humano entre si (a particularidade do trajeto identificatório e as escolhas de objetos de cada um). Cada modo de filiação seja: monoparental, homoparental, adotiva, recomposta, concubinária, temporária, de produção independente, de genitores falecidos etc., de qualquer maneira, cada modo apresentará sua própria configuração de angústia.
Porém, sob o ponto de vista da constituição do psiquismo a angustia, não existe a priori, não há nenhuma evidência que possa avalizar se um modelo familiar é mais ou menos patogênico que outro. As funções paternas e maternas não requerem a presença de um homem e de uma mulher. A anatomia de quem cria a criança não é um elemento fundamental para a construção da subjetividade pertencente a ela. Esta construção está muito mais subordinada à organização psíquica dos seus cuidadores, e também da maneira como eles se posicionam em relação à sua própria sexualidade, (a fantasia que permeia o ser pai e/ou mãe e, sobretudo o lugar que a criança irá ocupar no universo psíquico dos pais).
Devido à complexidade das novas formas de lapidações familiares, toda prudência é recomendada. Não devemos nos esquecer, entretanto que até o momento, todos aqueles que apresentam algum tipo de problema ou patologia mental, de comportamentos anti-sociais, tais como: a delinqüência, marginalidade, sociopatias, e tantos outros distúrbios, são aqueles criados por casais heterossexuais, significando que o sexo daqueles que se ocupam das crianças não traz, a priori, nenhuma garantia. Porém devemos estar atentos a toda idealização da heterossexualidade.
As grandes cidades são hoje inteiramente repletas de prazeres (os indivíduos sabem onde comprar drogas, onde se localiza a prostituição feminina, a masculina, os travestis e até, com certo pesar em dizer, a prostituição infantil), isto se torna um indicativo de sexualidade banalizada. E hoje há um grande erotismo pairado no ar, que talvez anuncie uma forma de relacionamentos mais instáveis, desprovidos de laços fortes, o que chamamos atualmente de um ficar. Porém, temos que ficar atentos para não nos tornarmos cheios de conservadorismos moralistas diante das facetas do progresso e, passarmos a acreditar que as coisas só estão caminhando em uma direção caótica.
Nos caminhos da cultura, a escola é uma das instituições mais antigas do mundo, extremamente conservadora e a instituição que menos muda na história, cujo modelo atual foi estruturado na Idade Média, e desde que surgiu serve para moldar as pessoas, pois transmite valores e princípios da sociedade. Foi na virada do século passado, que começaram a ser questionadas regras, até então imutáveis da escola.
Atualmente a educação brasileira passa por um período ainda mais abrangente de conflitos e instabilidades em todos os níveis. Estes conflitos estão relacionados a diversas problemáticas tais como: desajustes sociais na família, ausência de trabalho educacional em equipe, falta de verbas em educação, crescimento e banalização da violência, entre tantos outros fatores, que acabam interferindo diretamente no trabalho desenvolvido na escola.
Há um descaso referente aos valores passados para a criança. A função da família deveria ser a de propiciar uma construção de educação/base e também transmitir valores, contudo, a própria família está empurrando essa função para a escola. A escola não consegue fazer o papel da família e exerce o seu com dificuldades. Cabe ao professor orientar, guiar e facilitar o ensino-aprendizagem, ser um parceiro do aluno na busca e na interpretação crítica da informação. O professor tem que estar em formação continuada para poder exercer o seu papel.
Na atualidade há uma mudança radical na organização dos espaços físicos das escolas. A educação a distância é o maior exemplo de desapropriação física da escola. Tratando-se de um processo de ensino/aprendizagem mediado por tecnologias, onde professores e alunos estão separados no espaço/tempo.
Estudos de formas institucionais escolares estão propondo que as instituições futuras, devem ser mais democráticas mais comprometidas com a sociedade, ouvir as pessoas, pais e alunos, estar mais abertas à comunidade. Integrando os conteúdos escolares à ciência e à tecnologia mantendo os alunos mais envolvidos, de forma consciente e participativa com o próprio processo de aprendizagem, podendo assim tornar possível criar cidadãos críticos.
Penso que dentro deste contexto, e de uma forma multidisciplinar, a psicanálise possa contribuir mais para com a sociedade, e também para com as instituições escolares. Formando uma rede podendo assim vir a amenizar o sofrimento pertencente ao mal estar na civilização, e permitindo mitigar a violência, fazendo com que os laços afetivos possam garantir à criança um lugar no simbólico.
Estes novas lapidações familiares podem até parecem coisas de outra galáxia, nem Freud imaginaria que teríamos tantas novas configurações familiares. Mas o futuro já chegou. E ele não é obra de ficção científica, nem faz parte do campo da imaginação e do sonho, estamos no século XXI. A vida é repleta de diversidades e de ricas lapidações humanas – brilhantes, baguetes, navetes, indianas, cabuchons, millenium – entre tantas outras formas de lapidações possíveis, espero sinceramente que a evolução técno/científica possa contribuir mais do que apenas interesses mercadológicos.
Termino então esse capitulo com Freud em “O mal-estar na civilização” quando nos diz:
“Mas é assim que as coisas se nos apresentam atualmente, no presente estado de nosso conhecimento; a pesquisa e a reflexão futuras indubitavelmente trarão novas luzes decisivas para esse tema”.

 
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