Políticas Públicas em Saúde Mental no campo de Álcool e Outras Drogas - Marília Caponni

Experiências com a Supervisão Clínica em Equipamentos de Saúde Mental - Cláudio Loureiro

Articulações e Tensões entre as Políticas Públicas e a Política da Psicanálise - Rodrigo Alencar

O Acompanhamento Terapêutico e o Problema das Drogas pela Psicanálise - Ivan Estevão

Que Política para o Crack? - Debate parte 1

Que Política para o Crack? - Debate parte 2

V – I - Que Mundo de “Droga” é esse! - Texto - VII

Para muitos historiadores, antropólogos e sociólogos, a minha geração e daqueles que contam hoje com cinquenta anos ou mais, fomos os que viveram as mais significativas mudanças históricas da humanidade. Presenciamos a descoberta do DNA (1953), Betty Naomi Goldstein, mais conhecida como Betty Friedan – ativista feminista estado-unidense do século XX – (fomentou a segunda onda do feminismo), sobre os direitos da mulher (1963), Martin Luther King e a luta pelos direitos civis ((1963), a chegada do homem a lua (1969), a criação do primeiro computador pessoal (1981), o isolamento do vírus da AIDS (1981), a queda do muro de Berlim (1989), a criação do cyberspace – internet – (1991), a cisão da União Soviética (1993), a clonagem da ovelha Dolly (1997), o tão cruel 11 de setembro (2001), o seqüenciamento do genoma humano (2001), as atuais consequências do risco de um colapso ambiental – posicionando todo planeta em estado de alerta geral, o aumento totalizador das formas de violência humana, e a transformação dos indivíduos em mercadorias tão presentes hoje na contemporaneidade.
 As fabulas que estamos contando hoje não estão propiciando vivenciar valores. Linguagem é vida, uma narrativa contada em vozes diversas, formando um labirinto infinito de encadeamentos, aos quais estão soltos, flutuantes na comunicação de signos (desordenados de modo extremamente particular), desprovidos de metáforas, de simbolizações possíveis, não propiciando uma audição de plurais semeando incertezas e inseguranças. Nesse fadado mundo atual constatamos uma ruptura social de imenso antagonismo à alusão a civilidade. Se pensarmos em crise como resultado de algo que deixou de funcionar, veremos que o mundo não está conseguindo seguir uma direção funcional, está mais traumático. A família, a educação, a saúde, a política, o planeta estão nos conduzindo à autonomia individual, ao mercado, e a tecnologia cientificista. Estamos na sociedade da abundância do efêmero, do digital, do virtual, essa é uma das tendências do consumo. Como revela o sociólogo Bauman – a vida é líquida, o amor é líquido, viramos mercadorias – nós mudamos e com certeza não sem consequências.
De acordo com o filósofo Lipovetsky – as características da nossa época e o aumento dos problemas, como o suicídio, angústia, depressão e o medo – acompanham a individualização. Os indivíduos deixaram de ser conduzidos pelo coletivo. Eles não têm mais um grande objetivo coletivo que possa guiá-los. Houve uma mudança nas formas da educação, hoje geramos filhos fracos, frágeis, e esse é um grande enigma para o futuro. Porém, não há dúvidas de que a educação liberal gerou a fragilização em massa, esse será um desafio para o século XXI. Precisamos reconquistar espaço, pois observamos que os indivíduos estão muito frágeis, como se tivessem ficado sem força, e ali está um belo ideal: o que é educar? Não se tem progredido muito nesse sentido. Se pensarmos a revolução como uma oposição ao posto, que posto é, sempre que ela acontece de certa maneira tenta criar alguma ordem social. Observar o outro, suas dificuldades e facilidades, seus impasses para tentar uma reaproximação, se trata na maioria das vezes a busca de um conhecimento sobre nós mesmos. Jean-Paul Sartre filósofo francês, afirmava que cabe a cada um inventar sua própria moral, porém, não há condição moral sem uma existência coletiva, ela tende a pulverizar-se em função dos sistemas de relações em que se vive, ou que se pretenda viver. A sociedade procura se organizar de todas as maneiras para garantir equilíbrio social e promover ações de entendimento a todas as demandas de seus membros, com as distribuições de benefícios em doses equivalentes. A responsabilidade do Estado é direcionada a todos os setores que sustentam a base do tratamento dos cidadãos, oferecendo os instrumentos de realização, ganhos e assistência, enquadrando as providencias essenciais em saúde, educação, segurança trabalho, transporte, habitação, emprego e bem estar social. Só poderemos evoluir para uma sociedade mais ávil se agirmos em conjunto e, para isso precisamos ser éticos, que significa no mínimo sermos humanos. O poder público se apresenta inadimplente em inúmeros quesitos de responsabilidade, e omisso em situações dramáticas e diversas, que na maioria das vezes apresentam tentativas de resolução a partir de mobilizações da sociedade civil, incitada a agir por conta própria, criando instituições e tentando arrecadar recursos somados as curtas verbas oficiais para sua manutenção, se dedicando a suprir as mais elementares necessidades humanas. São incontáveis os exemplos de casos que trazem à tona, o absurdo de um poder público incapaz de oferecer alternativas de atendimento em caso de comprovada gravidade e, no qual a assistência medica, jurídica e social se apresentem em caráter de urgência. Não é de maneira alguma aceitável que o poder público não disponibilize alternativas para esse trabalho mínimo de suporte à população, condenando as pessoas a viverem sem o direito de receberem cuidados e oportunidades de se tornarem cidadãos úteis e integrais. Na atualidade, o poder do Estado é ao mesmo tempo individualizador e totalizador.
Como nos diz Michael Foucault: “o homem é útil e dócil”, indicando com isso, que o que está em questão nas relações de poder capitalista é a produção de um sujeito que tenha sua capacidade produtiva econômica liberada e a política inibida. Enquanto houver instituições que tragam para si a responsabilidade de ação, cobrindo as amplas lacunas públicas, haverá uma perspectiva alentadora, diferente disso só resta para sociedade aguardar indefinidamente. Na concepção de Lipovetsky as relações de trabalho têm alterado as relações entre os indivíduos. Outrora, eles pertenciam a grupos, eram operários, havia possibilidades de relações no nosso universo e elas existiam. Hoje temos as demissões, há uma incerteza quanto ao futuro, as pessoas se questionam. Antes se dizia: “É o capitalismo”, hoje também, porém, além disso, se diz: “Eu é que não sou bom, não estou à altura”. Podemos ver que a instabilidade no mundo do trabalho tem gerado falhas e, os indivíduos se questionam, têm dúvidas sobre si. Ao mesmo tempo, isso gera um maior distanciamento entre o indivíduo e a empresa. As pessoas estão mais desconfiadas, elas sabem que sua posição não é perpétua. Portanto, o futuro pede indivíduos cada vez mais móveis, capazes de trocar de empresa e até de profissão, em uma situação geradora de tanta angústia, a educação tem extrema importância, não possuindo uma formação educacional válida a situação se torna trágica. Por isso, no século XXI, a “hipermodernidade” deve fazer um tremendo esforço em matéria de educação, de formação. Caso contrário, geraremos indivíduos que sempre serão rejeitados, e isso é algo grave e terrível.
Quanto à ciência, esta opera a favor do sujeito como consumidor, assim, os objetos construídos pela ciência, oferecidos em condições a uma suposta assepsia, iguais para todos, se singularizam na forma pela qual os sujeitos, estes singulares, lhes dão substância.  O “mal-estar” na civilização é visível, a construção nome do pai e significante fálico que tempera desejo e gozo, atravessa uma dura prova em todos os níveis pertencentes a ela.* O objeto a causa, em ascensão ao zênite social – análogo ao ponto mais elevado do firmamento/humanidade –, mostra sua insuficiência na tarefa de fixar um percentual de gozo possibilitando assim que a obediência à lei oscile e vacile. O gozo não encontrando mais sua regulação pelo recurso da identificação ao pai, e as tradições, marca a entrada em uma nova era. O que caracteriza o mundo atual é o pluralismo em razão do desenvolvimento da sociedade democrática. Porém, a idéia democrática hoje é que pode tudo, sendo assim, a civilização se encontra pertencente a uma ausência de modelo positivista e assiste a manifestações de violências generalizadas. A sociedade perdeu seus projetos e, passa com isso a gerar tensão, deixando de fornecer possibilidades organizacionais, abrem caminhos aos indivíduos para compulsões de toda ordem na tentativa de uma busca de pertencimento de positivação. Vale lembrar que o comportamento adictivo nem sempre pode ser considerado sinônimo de psicopatologia, ele se configura como uma patologia quando a relação indivíduo-droga torna-se extremamente intensa, não permitindo o desenrolar de outras relações. Vivemos, atualmente, para além da pulsão de morte, uma descontinuidade que tem, na crueldade, um motor perfeito da linguagem desses novos tempos. A disseminação da violência, a corrupção vergonhosa, a falência/falácia da justiça e o consequente descrédito na lei produziram a destruição sistemática do que poderíamos chamar de espaço político e o fim da dignidade de um Estado/Nação.
Freud em “O Futuro de uma ilusão” (1927), nos diz que:
“Só através da influência de indivíduos que possam fornecer um exemplo e a quem reconheçam como líderes, as massas podem ser induzidas a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias de que a existência depende. Tudo correrá bem se esses líderes forem pessoas com uma compreensão interna superior das necessidades da vida, e que se tenham erguido à altura de dominar seus próprios desejos instintuais.” (O Futuro de uma ilusão (1927) – Vol.XXI)
A perspicácia profunda que Freud tinha de que o humano é atravessado por forças desconhecidas e destrutivas, fazia com que ele se preocupasse com as pulsões de domínio e a consequente indução à alienação.
“Entretanto, com o reconhecimento de que toda civilização repousa numa compulsão a trabalhar e numa renúncia ao instinto, provocando, portanto, inevitavelmente, a oposição dos atingidos por essas exigências, tornou-se claro que a civilização não pode consistir, principal ou unicamente na própria riqueza, nos meios de adquiri-la e nas disposições para sua distribuição, de uma vez que essas coisas são ameaçadas pela rebeldia e pela mania destrutiva dos participantes da civilização”. (O Futuro De Uma Ilusão (1927) – Vol.XXI)
Pensando as compulsões ligadas às pulsões em termo de intensidade, ele já previa que essas forças, à deriva, poderiam ganhar formas expressivas e assustadoras por conta de sua potência e indeterminação. Diante dessa desordem atual, o sintoma presentifica e atualiza a presença do inconsciente, das repetições, das compulsões, das perversões, da onipotência e da paranóia. As pulsões não cessam de agir no campo social, o pulsional faz parte da constituição subjetiva do sujeito e também do fundamento de uma sociedade. Tudo o que escapa e que é irredutível à razão é relativo ao inconsciente. O inconsciente possui uma sintaxe própria, não é designado por uma coisa ou um lugar, ele é uma lei de articulação. O inconsciente não é a intimidade da consciência, nem aquilo que a subjetividade tem de desordenado e imprevisto.  Através de uma racionalidade jamais conseguiremos domesticar o desejo, o amor, o ódio, mesmo que tentemos intervir nessas relações de força, nunca se poderá torná-las inoperantes. Os principais conceitos freudianos fazem parte hoje dos atuais fenômenos pertencentes a nossa civilização: as formas de vínculos sociais, os jogos identificatórios, as compulsões, as patologias narcísicas, o desejo de reconhecimento, o estranhamento, a segregação etc. A psicanálise pertence a um processo de atualização constante, assim como Freud a atualizava diante de seus questionamentos, ela entra em cena através daquilo que ela tem de mais precioso – a capacidade de propiciar reflexões – a transportando para além dos divãs.
Quando o mundo se cerca de droga, pensar a drogadicção de toda ordem implica seguir um caminho para além das drogas. Pretendo aqui propor uma reflexão no sentido, de que qualquer coisa pode vir a ser uma droga e sendo assim pertencer ao campo da drogadicção, que é hoje o mal do século, e em minha opinião mais fortemente dos vindouros. O comportamento adicto vem se ascendendo de formas cada vez mais diversificadas, tentando suprir um sofrimento a qualquer custo, e frente ao desejo de completude absoluta, a adicção traz em suas expressões algo de um controle absoluto enganador sob uma via inversa. O adicto se apresenta, digamos como aquele que perdeu a sua identidade, simultaneamente, adota uma identidade imprópria como única maneira possível de saldar sua dívida para consigo mesmo. Podemos dizer que o adicto é um homem ou uma mulher cuja vida é compulsiva, e ao mesmo tempo controlada/guiada pelo objeto droga. Em uma sociedade que possui uma cultura adicta/consumista, o uso de droga constitui-se em uma das formas de produção de identidade referencial de pertencimento a um grupo. Aquilo que é uma droga, portanto é uma alternativa fortíssima frente à fragilidade das referências simbólicas hoje tão equivocadas. A adicção configura uma comunhão relativa a um compromisso mágico, nostálgico e amoroso, tamponando e esvaziando o agir e o desejar, figurando uma transcendência.
Qual o lugar que a droga – comportamento adicto – ocupa no “mal-estar” na civilização como dizia Freud, ou o “sinthoma” como precisa Lacan, na atualidade?
Se observarmos a crescente bibliografia psicanalítica sobre as adicções, existem diferenças significativas nas concepções e abordagens. Estas diferenças obedecem, obviamente, às preferências e filiações de autores diversos. Iniciarei minha reflexão pelo conceito da palavra adicção num sentido mais amplo e que nos permita entender melhor a importância e a necessidade das condutas adictivas em determinadas pessoas, percorrendo uma abordagem psicanalítica do desamparo humano e a psicopatologia das adicções.
V – I – Conceito de Adicção/Droga
Quando nos remetemos à palavra adicção imediatamente a relacionamos com dependentes químicos, expandindo esse horizonte com auxílio da etimologia como sendo “somente uma aplicação especial dos princípios relativos aos fatos sincrônicos e diacrônicos, remontando o passado das palavras até encontrar algo que as explique”. A etimologia retrata antes de tudo a “[...] explicação das palavras pela pesquisa de suas relações com outras palavras. [...] faz a história de famílias de palavras, assim como a faz dos elementos formativos, prefixos, sufixos, etc.” (Saussure, 2006:219-220).
Dito isto, em sua origem etimológica, o termo adicção terá um sentido mais amplo, este remete ao latim adicto que se origina do particípio passado do verbo addico – uma das palavras determinadas ao uso dos juízes romanos, quando eles permitiam a entrega da coisa ou da pessoa, sobre a qual se havia passado em julgamento – seu particípio é addictum e quer dizer o adjudicado ou designado – oferecido ou oferendado. Nos tempos da República Romana, o homem que ao pagar uma dívida se convertia em escravo, por não dispor de outros recursos para cumprir o compromisso contraído, ou aquele que se assumia como marginal ou ainda alguém que fatal ou voluntariamente, fora jogado numa condição inferior a que tivera até então, era considerado um servi addicti. Sendo assim os bens adjudicados desta forma pelo magistrado da Roma Antiga que distribuía a justiça ao verdadeiro proprietário eram chamados bona addicta. Adicto, portanto na lei romana é a ação de passar ou transferir bens a um outro, seja por sentença de uma corte, seja pela via de venda àquele que oferece mais. O substantivo adicção designa em nossa língua a inclinação ou o apego de alguém por alguma coisa. O adjetivo adicto, por sua vez, define a pessoa francamente propensa à prática de alguma coisa/crença, atividade, trabalho ou partidário, afeição ou mesmo dependência, por exemplo, a determinados princípios. No dicionário Aurélio Eletrônico: Verbete: adicto [Do lat.addictu.] Adj. afeiçoado, dedicado, apegado ou ajunto, adstrito, dependente. “(Hoje, addiction tornou-se uma palavra comum nos escritos psicanalíticos da França [...]. Embora o adicto possa sentir-se escravizado ao fumo, ao álcool, à comida, aos narcóticos, as drogas psiquiátricas ou a outras pessoas, [...] o objeto da adiccção é vivenciado como essencialmente “bom””. (McDougall, 1995-2001:198:200). Adicção e vício aparecem em françês e em português como proposta de tradução do termo alemão sucht que está lingüisticamente associado a palavra suchen cujo significado é buscar.
 Conforme a linguagem médica referente ao termo droga, fármaco, medicamento, remédio, veremos que: “[...] designava primitivamente toda substância orgânica ou inorgânica empregada como ingrediente de tinturaria, química ou farmácia. As drogas usadas em medicina eram chamadas drogas medicinais, compreendendo as de origem animal, vegetal ou mineral. As mais comuns eram as de origem vegetal. Os árabes manipulavam com eficiência as drogas medicinais, tendo introduzido ou aperfeiçoado várias operações químicas, como a filtragem, a evaporação e a destilação. O termo droga, entretanto, só começou a ser usado na Idade Média e a sua origem é controversa. Várias possibilidades têm sido admitidas; as mais verossímeis são:
1 – Do baixo alemão droghe vate, expressão que designava o recipiente onde se guardavam as ervas secas. [1]
2 – Do neerlandês droog, que quer dizer seco. [2]
3 – Do céltico, com a acepção de má qualidade. Falam a favor desta hipótese os vocábulos droug em bretão, e droch em irlandês. [3]
Qualquer que seja o seu étimo, o termo droga, de acordo com a maioria dos léxicos, designa a substância ou matéria da qual se extrai ou com a qual se prepara determinado medicamento. [...] De droga formou-se drogaria. É interessante seguir ao longo do tempo a evolução semântica da palavra drogaria.
Drogaria significava inicialmente uma porção de drogas. [5]. De coleção de drogas passou a designar o local onde se guardavam as drogas e, finalmente, o comércio de drogas. [6]. Atualmente chamamos drogaria ao estabelecimento comercial onde se vendem medicamentos e outros produtos acabados, como cosméticos e perfumarias, prontos para serem usados. Torna-se, assim, compreensível a mudança de significado que está ocorrendo com a palavra droga. Droga também quer dizer coisa de pouca valia. Esta acepção é bem antiga em nossa língua, o que traduz, sem dúvida, a sabedoria popular. No século XX a palavra droga ganhou um novo significado, passando a ser empregada como sinônimo de tóxico. O verbo drogar e o seu particípio passado, drogado, expressam, respectivamente o uso de tóxicos alucinógenos e o estado decorrente da ação deste. Fármaco, como sinônimo de medicamento, é pouco empregado em linguagem comum, estando ausente da maioria dos dicionários contemporâneos. Em linguagem médica tem sido utilizado de preferência com sentido restrito, para designar uma substância única, orgânica ou inorgânica, de composição conhecida. Nesta acepção não pode ser considerado sinônimo de medicamento”. (Resende, 2004: 182-183)
Para falar do termo Fármacéia – Pharmákeia – recorro agora, ao livro de Jacques Derrida “A farmácia de Platão”, utilizando como ponto de partida o diálogo do Fedro, de Platão, encaminhado por Sócrates e desenvolvido por Derrida. Trata-se a primeira vista de uma genealogia da escritura, no mito de Theuth, apresentada como phármakon termo ambíguo, retratado na sua ambivalênciaremédio e/ou veneno – articulado a outros signos, os textos escritos que Fedro trouxe consigo que seduzem Sócrates arrastando-o para além dos muros da cidade de onde ele raramente se afastava – a principiante medicina hipocrática contida no método dialético de Platão, em oposição à cautela do método sofista. Sócrates parodia um suposto discurso narrando para Fedro a apresentação da escrita por seu inventor, o Deus egípicio Thoth, ao Rei Thamous, nesse diálogo a cena se encontra dividida em uma espécie de antecena, referida por Sócrates, sobre uma virgem Orítias imprudente, surpreendida pela morte, ao brincar com Farmacéia (Pharmákeia – nome comum que significa a administração do phármakon, da droga), mito do rapto da virgem por Bóreas. Sócrates parodia um suposto discurso sábio interpretando ironicamente, cuja função dessa interpretação alegórica inserida no início do Fedro parece ser exclusivamente a de um adeus ao mythos e ao exercício de racionalização correspondente – cena do khaírein em nome da verdade enquanto autognose, (rito próprio da consciência superlativa do ser). Porém, não impedindo posteriormente a narração de outras fábulas. Sócrates então diz:
 “Esse encanto, essa virtude de fascinação, essa potência de feitiço podem ser – alternada ou simultaneamente – benéficas e maléficas. O phármakon seria uma substância, com tudo o que esta palavra possa conotar, no que diz respeito a sua matéria, de virtudes ocultas, de profundidade crítica recusando sua ambivalência à análise, preparando, desde então, o espaço da alquimia, caso não devamos seguir mais longe reconhecendo-a como a própria anti-substância: o que resiste a todo filosofema, excedendo-o indefinidamente como não-identidade, não-essência, não-substância, e fornecendo-lhe, por isso mesmo, a inesgotável adversidade de seu fundo e de sua ausência de fundo. Operando por sedução, o phármakon faz sair dos rumos e das leis gerais, naturais ou habituais ”. (Derrida, 1972-2005:14).
A Etimologia da palavra phármakon:
 “4. Lembremos aqui a etimologia presumida de phármakon/pharmakós. Citemos E. Boisacq, Dictionnaire étymologique de la langue grecque. “Phármakon: encanto, filtro, droga, remédio, veneno. Pharmakós: mágico, feiticeiro, envenenador, aquele que se imola em expiação das faltas de uma cidade (cf. Hiponax; Aristófanes), donde celerado (*) pharmasso:att.-tto: trabalhar ou alterar com o auxílio de uma droga.
(*) Havers IF XXV 375-392, partindo de parempháraktos: parakekomménos, deriva phármakon de phárma: ‘golpe’ e este de R. bher: bater. cf. lit. buriu, de forma que phármakon teria significado: ‘ o que concerne um golpe demoníaco ou que é empregado como meio curativo contra tal golpe’, sendo dada a crença popular muito difundida de que as doenças são causadas por golpes do demônio e curadas do mesmo modo. Kretschmer Glotta III, 388 sq, contrapõe que phármakon na epopéia designa sempre uma substância, erva, unguento, bebida ou outra matéria, mas não a ação de curar, de encantar, de envenenar: a etimologia de Havers acrescenta apenas uma possibilidade em face de outras, por exemplo a derivação de phéro, phérma, ‘quod terra fert’.”
Cf. também Harrison, p. 108: “...o pharmakós significa simplesmente ‘homem-mágico’. O termo aparentado, em lituano, é burin, mágico; em latim, ele aparece sob a forma de forma, fórmula, encanto mágico; nosso ‘formulário’ retém algum vestígio de sua conotação primitiva. Phármakon quer dizer em grego droga curativa, veneno, tintura, mas sempre, para o melhor ou para o pior, em um sentido mágico”. (Derrida, 1972-2005:84)
     
“De phármakon derivam várias palavras, tais como farmacologia, farmacognosia, farmacotécnica, farmacodinâmica, farmacopéia, farmacoquímica e muitas outras. Farmácia veio do grego pharmakía, através do latim pharmacia. Significava originalmente a arte de preparar medicamentos e, por extensão, passou a designar os estabelecimentos onde se preparam e se vendem medicamentos. Em sua grande maioria são estabelecimentos comerciais em tudo semelhantes às drogarias, das quais se distinguem apenas por serem de menor porte.
Medicamento do latim medicamentum, vocábulo que tem o mesmo tema de médico, medicina, medicar, etc., e que se liga ao verbo medeor, que significa cuidar de, proteger, tratar. Medicamentum, em latim, tinha também o sentido de beberagem mágica, bruxaria, feitiço. [7]
Remédio provém do latim remedium, aquilo que cura. Remédio e medicamento também não são sinônimos perfeitos. “Remédio tem um sentido mais amplo que medicamento. O remédio compreende tudo que é empregado para a cura de uma doença... O exercício pode ser um remédio, porém nunca é um medicamento”. [8] "Remédio é termo mais extensivo que medicamento, é o gênero de que este é a espécie”. [9] Remédio é termo de uso predominantemente popular e literário, pouco empregado em linguagem científica.
Terminando estas considerações podemos concluir que cada um dos termos assinalados possui significado próprio e só de modo genérico podem ser considerados equivalentes. Percebe-se, contudo, nos textos médicos atuais, uma clara tendência de conferir à palavra droga o mesmo significado de fármaco, sobretudo quando se trata de substância química sintetizada pela indústria farmacêutica”. (Rezende, 2004:183-184)
A tradução corrente no texto “A farmácia de Platão”, da palavra phármakon por remédio – droga benéfica – não é de certa forma inexata, podendo querer dizer remédio e desfazer, a uma certa superfície de seu funcionamento a ambiguidade de seu sentido.(Derrida, 2005)
Porém, diante dessa ampla polissemia, o que fazer perante tal ambiguidade do grego phármakon e do latin venenum na cultura contemporânea, onde assistimos manchetes referentes, por exemplo, a trágica ocorrência de mortes, nos hospitais, causada pela ingestão do produto Celobar, usado em exames de contraste, posto que, vários frascos desse produto foram distribuídos pelo país inteiro, e, a cada dia, novas mortes foram anunciadas, não se tendo, sequer, informações concretas e definidas da extensão e da gravidade desse problema (2003). A imprensa também noticiou que o medicamento Silomat foi retirado do mercado. O antitússico Silomat foi retirado do mercado mundial depois de um estudo recente detectar reações cardíacas adversas nunca antes assinaladas. Embora sem registro de reações fatais, a firma que o produz - Boehringer Ingelheim - optou pela sua retirada urgente numa atitude preventiva. “Trata-se de um medicamento muito vendido e que não necessita de receita médica”, disse ao JN o presidente da Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed), Vasco Maria, segundo o qual este caso é a prova de que todos os medicamentos têm risco. Mesmo os mais antigos e testados do mercado (2007). O Infarmed recebeu cinco notificações de reações adversas ao Silomat ao longo dos anos, duas das quais “poderão ter a ver com a reação de arritmia cardíaca agora descoberta”. Um caso de síncope e outro de taquicardia - mas nenhum fatal, a que se somam erupções cutâneas.
Na filosofia platônica podemos observar que a palavra promove o cuidado da alma e a saúde integral, é, portanto o remédio. Hoje temos o remédio e o veneno num múltiplo espaço de ação. Vivemos cercados de medicamentos antidepressivos e ansilíticos que, apesar da aparente melhora no quadro clínico, propiciam apenas uma espécie de ilusão de ganho sobre o objeto perdido nos estados de tristeza, ansiedade e depressão, podendo vir a configurar até uma dependência em relação ao próprio medicamento, em nada podendo influir na força tirana destrutiva do sujeito. Phármakons produzidos visando sazonamento e saúde porém, promovendo doença e morte. Um medicamento mal empregado pode gerar doenças, pode mascarar uma patologia, uma palavra mal empregada também pode configurar um grande risco. Precisamos ter muito cuidado para não cometermos o errante uso do phármakon. Culturalmente hoje dispomos de pouco tempo e, espaços envolventes para reflexão de idéias, que poderiam proporcionar possíveis vínculos pessoais. Vivemos hoje relacionamentos efêmeros, há uma enorme reversão nas relações humanas, uma abundância de faltas significativas para o humano. O phármakon, ou seja:
“A escritura seria uma pura repetição e, portanto, uma repetição morta que pode sempre nada repetir ou não se repetir espontaneamente a si mesma: ou seja, do mesmo modo, só repetir a si mesma, a repetição vazia e abandonada. [...] Repetição pura, repetição absoluta de si, mas de si já como referência e repetição, repetição do significante, repetição nula ou anuladora, repetição de morte, é tudo um”. (Derrida, 1972-2005:86).
 
Bibliografia
1-                 Diderot, & D'Alembert (1988). Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences des arts et des métiers, Vol. 1. Stuttgart - Bad Cannstatt: Friedrich Frommann Verlag (Günther Holzboog). (Originalement publié em 1751).
2-                 Site Álcool e Drogas sem Distorção (www.einstein.br/alcooledrogas) / NEAD - Núcleo Einstein de Álcool e Drogas do Hospital Israelita Albert Einstein.
3-                 * MILLER, J.A. Lacan e a política. In: Opção Lacaniana, n. 40, ago. 2004:19
4-                 * Idem, 2004:18
5-                 * Idem, 2004:18
6-                 http://www.woxikon.de/
  1. SKINNER, H.A. - The origin of medical terms, 2.ed. Baltimore, Williams & Wilkins, 1961, p. 146
  2. BLOCH, O.,VON WARTBURG, W. - Dictionnaire étymologique de la langue française, 7.ed. Paris, Presses Universitaires de France, 1986.
  3. COROMINAS, J. - Breve diccionario etimológico de la lengua castellana, 3.ed., Madrid, Ed. Gredos, 1980.
  4. .
  5. MORAES SILVA, A. - Dicionário da língua portuguesa. Lisboa, 2.ed. Typographia Lacerdina, 1813.
  6. VIEIRA, D. - Grande dicionário português ou Tesouro da língua portuguesa. Porto, Ernesto Chardron e Bartholomeu H. de Moraes, 1871-1874.
7.      SARAIVA, F.R.S. - Dicionário latino-português, 10.ed. Rio de Janeiro, Liv. Garnier, 1993.
8.      Vieira, 1871-1874.
9.      LACERDA, J.M.A.A.C. - Dicionário enciclopédico ou Novo dicionário da língua portuguesa. Lisboa, F. Arthur da Silva, 1874.
Reproduzido do livro Linguagem Médica, 3a. ed., da AB Editora e Distribuidora de Livros Ltda.
Autor: Joffre M. de Rezende. Maiores informações pelo tel. (62) 212-8622 ou e-mail abeditora@abeditora.com.br
7 - DERRIDA, J. (1972-2005), A Farmácia de Platão  
 
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